Nos tempos actuais, falar de viagens associa-se à ideia de férias, diversão, conhecimento de novos lugares, pessoas diferentes e seus costumes. As viagens de negócios, de estudo, de encontro entre especialistas dos diferentes saberes, sendo de trabalho, incluem, na maioria dos casos, um intervalo, curto que seja, para uma fuga ao quotidiano. Mesmo as peregrinações, quando usam os meios de transporte, não enjeitam uma pausa para as fotos, a compra de lembranças, as visitas aos locais mais turísticos da região.
Noutros tempos, viajar equivalia a pôr a vida em risco: despedidas pungentes da família, testamento firmado, enfim, disposições de quem sabia que a possibilidade de não regressar era muito alta. E, no entanto, viajava-se, por necessidades de vária ordem, a menor das quais não seria, certamente, o espírito irrequieto que é próprio do ser humano. Falemos, então, de um viajante incansável: São Nicolau.
Na segunda metade do século III d.C., nasceu em Patras, na Grécia, um menino a quem deram o nome de Nicolau, nome auspicioso pois inicia-se com «nicos» que quer dizer «Vitória». Cristão piedoso, recebida a herança paterna, Nicolau praticava a caridade entre os seus concidadãos, sempre de forma discreta. Um dia teve conhecimento de que um seu vizinho, pai de três raparigas casadoiras, não tendo dinheiro para os seus dotes, intentava vendê-las como escravas. Condoído pelo que ouvira, dirigiu-se, à noite, a casa do vizinho e, através da chaminé, lançou para dentro de casa uma bolsa com moedas de oiro. A bolsa foi cair dentro de uma meia que secava na lareira e foi encontrada, na manhã seguinte, com grande alegria da família, especialmente da filha mais velha que via, assim, assegurado o seu dote. Algum tempo depois, Nicolau lançou uma segunda bolsa, tendo em mente contemplar a filha do meio. Depois deste gesto, o vizinho decidiu manter-se alerta para surpreender o anónimo benfeitor que, certamente, haveria de deixar, pelo mesmo processo, um terceiro dote. Uma certa noite, quando ouviu o tilintar das moedas caindo dentro da meia, o pai de família saiu à rua e, reconhecendo Nicolau, agradeceu-lhe, comovido, a sua generosidade. Nicolau, no entanto, proibiu-o de contar o sucedido a quem quer que fosse, o que não evitou que o caso caísse no domínio público.
Algum tempo depois, Nicolau viajou até Mira, na Ásia Menor, actualmente a cidade de Demre, na Turquia. De forma miraculosa, ao entrar na catedral para rezar, Nicolau viu-se escolhido para bispo, pois o anterior tinha falecido e ainda não tinha sido encontrado substituto. A autoridade da sua pregação, a justeza das suas decisões e os milagres que lhe eram atribuídos, granjearam-lhe fama de santo. No desempenho das suas funções pastorais, Nicolau teve de viajar muito. Alguns autores dão-no como estando presente no Concílio de Niceia, mas não há documentos que o atestem. São Nicolau é um santo popular, orago de muitas igrejas, padroeiro da Grécia, da Rússia, e de Bári, a cidade italiana para onde os seus restos mortais foram transladados no século XI, dando origem a que a cidade se tornasse num grande centro de peregrinação, na Idade Média. Em 1969, o papa Paulo VI retirou do calendário oficial romano o dia de São Nicolau (6 de Dezembro), em virtude da escassa informação factual sobre a sua vida.
Contudo, as lendas fazem caminho, independentemente da existência, ou não, de documentos que as creditem. O caldo das lendas (ou milagres), acrescentado ao longo dos tempos, contaminado por outras lendas, porventura mais antigas, aumentado com o talento de quem as relata, deu o mote para que, no século XIX (1823), o professor de um seminário americano, Clement Clark Moore, tenha escrito um poema intitulado «Relato de uma Visita de São Nicolau», para oferecer, no Natal, às filhas. O poema circulou anónimo algum tempo. Nele, o autor referia uma viagem do santo, num trenó puxado por oito renas, na noite de Natal. Em 1866, o caricaturista americano, de origem alemã, Thomas Nast, publicou uma gravura de São Nicolau, sem os atributos episcopais, uma figura rotunda, jovial, de barbas brancas, fato vermelho e botas, satirizando o aspecto de um holandês das classes populares da época.
O poema, falando de um trenó e de renas, conjuntamente com a gravura de Nast, constituíram o suporte para a figura do Pai Natal, o popular viajante que, numa só noite, chega a todas as casas onde habite uma criança, carregado com um enorme saco cheio dos sonhos de cada uma, sonhos que podem ser a resposta a um pedido específico, ou constituir uma surpresa, quando os sonhos da criança são impossíveis de concretizar.
Os povos que fundaram a América, vindos dos vários recantos da velha Europa, fizeram muito para difundir, à escala mundial, esta imagem do Pai Natal. Os nórdicos ter-se-ão encarregado do trenó e das renas. O sino pode ter vindo de qualquer ponto. A capacidade de voar e estar, ao mesmo tempo, em vários lugares, é fácil de entender, pois é a ambição mais antiga dos homens…
Vivam as lendas e os sonhos que as ajudam a perdurar. E vivam os povos que têm memória.
Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no Boletim Informativo da S.C.da M.do Cartaxo.