Haverá uma dúzia de anos – é incrível como o tempo se escoa, quase sem darmos por isso! – assisti, no teatro Villaret, em Lisboa, a uma peça de teatro, com encenação e interpretação do admirável António Feio, na qual participavam, também, outros atores, todos brilhantes, aliás.
A questão que se colocava em cima do palco, com a cumplicidade de um público completamente rendido, era o conceito de Arte. O adereço principal, o fulcro da discussão, era um quadro sem cor que, por ser tão importante no cruzar das ideias, era, ele mesmo, uma personagem.
Depreendia-se do enredo que a tela teria custado bom dinheiro ao proprietário da casa, homem a meio da vida, que construíra a pulso uma carreira e que começara, há pouco, a investir em obras de arte. Os seus amigos, materialmente menos abastados, com percursos diferentes, tendo, cada um, uma visão própria acerca do que é essencial ao homem, vivendo os seus dilemas e contradições internas, foram convidados a apreciar o quadro e as suas apreciações coincidiram, apenas, num ponto: o quadro era branco, totalmente branco. O dono lançou-se na defesa da obra, para a valorizar. Apontou gradações e contrastes de branco, texturas, sugestões de contornos e volumes, incidências de luz, perspetivas, alterações delicadas, conforme fosse visto de tal ou tal ângulo, e, é claro, colocou num pedestal a assinatura do autor, um mestre. Esforço vão. Não obstante o vigor da argumentação, para os outros o quadro era branco, branquinho imaculado, sem mais, ponto final.
No texto havia, embrulhados na discussão, aparentemente fútil, vários conceitos importantes e a sociedade que os elabora ia sendo desnudada com a irreverência própria de uma comédia, bem articulada e sem moralismos.
Veio-me à memória esta peça - Arte - quando hoje, através do noticiário da Antena 1 tomei conhecimento que uma conceituada firma internacional de leilões mandou a Portugal alguns dos seus peritos para avaliarem gratuitamente (esta é uma palavra muito em desuso, diria, mesmo, a tender para o limbo do esquecimento) objetos de arte, pertença de particulares.
A peça radiofónica incluía algumas breves entrevistas com pessoas que tinham recorrido, ou iam recorrer, ao parecer dos experts.
Apenas duas pessoas disseram ser proprietárias dos bens que levavam para avaliação e assumiram que talvez os entregassem para leilão. As outras optaram por evasivas: «é um quadro que está na posse de um amigo lá da minha terra…», «uma amiga pediu-me que...», «não preciso de vender mas gostava de ter uma ideia acerca do valor…».
A leiloeira acomodou os funcionários num hotel de uma zona nobre, nos arredores de Lisboa, de acordo com a categoria dos potenciais clientes, e como o exige a categoria da própria empresa.
Parece evidente que um quadro absolutamente branco, como aquele de que falámos acima, não seria aceite para leilão, embora, creio, não sejam desdenhados certos tons de branco, como o branco do marfim, o dos metais preciosos, o de certas pedras, ou o das pérolas. Aí sim, vale falar-se de gradações, de diferenças na captação da luz, de qualidades artísticas e artesanais, de patines e de autorias e escolas, se possível.
Este pequeno texto deveria ficar por aqui. Mas não é que, tão a despropósito, me ocorreu a palavra «crise»? Sim, aquela crise que a História há-de analisar, aquela que anda em todas as bocas, a nacional, a europeia, a mundial, a da economia e das finanças e, até, a dos costumes. Convenhamos: este parágrafo está a mais. Não se entende bem, de facto ,o que é que a Arte, a crise e a oportunidade de negócios possam ter em comum…
Nota final: Caro leitor, se quiser, pode ignorar, mesmo, o último parágrafo e não tem que apresentar justificações. Ora essa! Era só o que faltava!
Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no jornal da S. C. da M. do Cartaxo.