A lesma é um caracol sem-abrigo.
O seu corpo nu, sempre exposto à chuva, ao vento, à torreira do sol, é moreno, de tez carregada, bem distinta da tez mais clara do caracol que, detentor de outros recursos, defende melhor os seus interesses.
A concha pode ser selada quando tal se torna necessário, como uma porta que se fecha para maior conforto de quem vive na casa. Os olhos, implantados em corninhos, vêem mais longe e salientam-se ou recolhem-se, verdadeiros periscópios de submarino, emergindo da água na ocasião certa.
Mas também existem muitas semelhanças, de família, entre estes bichos: sem osso nem armadura, qualquer pé os esmaga, na pressa da caminhada, sem intenção, ou com o propósito de os eliminar, pois que ambos são vorazes consumidores de verdura tenra. Nos campos incultos não há quem se importe com o consumo; já nas hortas e jardins, o caso muda de figura. Aí, são mal-amados, sujeitos à ação de químicos que os afastem ( ou matem). Porém, que se saiba, não são espécies em perigo de extinção; mas, lá que têm a vida sempre por um fio, isso não se pode negar.
Predador em toda a linha é o gafanhoto. Robusto, corpo endurecido, pernas de atleta, olhos que descortinam a comida a grande distância e, sobretudo, asas, asas que lhe permitem voar de continente em continente, o gafanhoto não se fica por mesas baixas, isto é, não lhe bastam canteiros de hortas e jardins. Abastece-se onde houver maior fartura e melhor qualidade. Após a sua passagem, toda a vegetação fica como se tivesse ocorrido uma tempestade de granizo, esmordaçada, sem préstimo, sem esperança de ser alimento para outros animais. Nada que cresça firmado numa raiz – vinhas, pomares, olivais – fica a salvo da sua desenfreada gula.
Diz a fábula moderna que, numa bela manhã, se encontraram num pequeno quintal uma lesma, um caracol e um gafanhoto. Ao ver o gigante avançar sobre o limoeiro, a lesma escondeu-se debaixo de uma folha caída e foi procurar, no solo em decomposição, alguns restos de verdura mais ou menos comestíveis. E escondida se manteve enquanto o inseto se banqueteava.
O caracol, junto a um pé de couve galega, roía um rebento novo quando, para seu espanto, o gafanhoto, saltando do limoeiro, pousou na couve e começou a rasgá-la, folha por folha, a tal velocidade que, em menos de nada, só restavam talos, como esqueletos sem carne.
Indignado com a visível falta de sensibilidade do gafanhoto, o caracol interpelou-
-o:
-o:
-Senhor Gafanhoto, não vê que comeu em excesso? Eu estava a alimentar-me da couve que o senhor acaba de ripar completamente! Nem uma folha me resta!
Ao ouvir o protesto do caracol, a lesma saiu do esconderijo e avançou um pouco em direção aos outros animais.
O caracol continuou:
- Se o senhor não parar de comer, nós não podemos sobreviver, não podemos aguentar!
Nesse instante o gafanhoto reparou na lesma, quase confundida com a terra, criatura ínfima, desprovida de tudo, sem defesas; contudo, estava viva, a rastejar, a rastejar…
Perante o que vira, e já de partida para o quintal vizinho, o gafanhoto dignou-se, em tom conciliador, responder ao caracol, apontando a lesma:
- O senhor não aguenta? Ai aguenta, aguenta. Pois se até a lesma aguenta!
E, assim, bateu asas e voou, tranquilo, com a absoluta certeza de que os bichos rasteiros não só aguentam como é próprio da sua índole aguentar.
Maria Amélia Timóteo
Maria Amélia Timóteo
Texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.