18 março 2013

REDE

Escrever espontaneamente é algo que só acontece quando o impulso de registar um pensamento, uma imagem, uma fantasia, se torna urgente, sem consentir demoras.
A vida social exige, contudo, outras escritas, as quais são reguladas pela rede em que nos inserimos: relatórios, discursos, apreciações críticas, artigos temáticos ou entrevistas, às vezes trabalhos por encomenda, cartas, mesmo um qualquer recado, claro, objetivo, imediato.
Esta é a escrita mais ou menos formatada, a que tem de se cumprir no exato tempo, isto é, a escrita como obrigação. A primeira, é a escrita que flui como uma nascente que irrompe, livre de constrições, de horários e de condicionantes externas. Será rápida ou pausada, realiza-se, sem mais, ao ritmo que ela própria cria a cada nova palavra com que se expressa.
Quando se pode escrever desta forma descomprometida, em tudo livre, é a própria alma que se passeia sobre o papel ( ou sobre o teclado) e conduz a mão, perseguindo a ideia. Desta forma se constrói, fio a fio, a narrativa, numa rede tecida sem esforço, branda e segura, de nós firmes e malhas contínuas.

Refletindo acerca destas duas distintas, quase opostas, formas de escrever – uma livre; a outra, dependente das normas estabelecidas – encontrei uma palavra que a ambas é comum porque a ambas convém, na medida em que serve para configurar o respetivo significado: rede.

O emaranhado de fios que forma a sociedade assenta em códigos que facilitam a comunicação, com vista à sua eficácia e geral compreensão. Depois, para cada área dos diferentes saberes, existem termos próprios, usados pelos especialistas, e a que os leigos só acedem por mera aproximação, enredados em conceitos que não dominam. Estamos, assim, em presença de uma rede.
Quando a escrita é espontânea, a rede é muito fluida, de malhas largas e fios delgados, de modo que a comunicação tenda a alcançar uma compreensão universal. Nada de mais falso, porém. A escrita livre, não excluindo quaisquer leitores, não os busca, em concreto, nem busca o seu aplauso ou adesão. Eles poderão entrar ou sair da rede, fixar-se num ponto ou num outro, entender de uma forma ou da forma oposta, adotar como seu o discurso ou rejeitá-lo.
A escrita livre dirige-se a leitores, em absoluto, livres, mas que não podem condicionar ou orientar o que é escrito. Tocam a rede quando querem sem necessitarem de confinar-se nela. Tão pouco podem pretender alterá-la. Circulam, tão somente, entre as suas malhas.

E, como se situa, relativamente ao texto, quem o escreve?
Vai tecendo a rede, reforçando as malhas onde as sente menos firmes, alargando alguns nós, tecendo e desfazendo a teia, até dar por concluído o escrito. Quando aí chega, com intermitências ou de um só fôlego, transforma-se em leitor, igual a qualquer outro, apenas com uma pequena diferença: pode recompor, ainda, as malhas, cerrá-las ou abri-las mais, ou, eliminar algumas, por desnecessárias.
Por fim, chega o momento em que a rede não consente mais ajustes.
Estendida a todos, aguarda, silenciosa, quem nela quiser prender-se.

Maria Amélia Timóteo
Texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.