É interessante a leitura das hagiografias, isto é, das vidas de santos. São relatos envoltos em lendas que visam identificar o santo, ou a santa, situá-lo no tempo e no espaço geográfico em que ocorreram os episódios miraculosos que, através desse santo, Deus realizou. No caso dos mártires, os relatos são arrepiantes, tal a crueza das torturas e a persistência com que eram infringidas, mesmo quando, para os crentes, a vontade divina já determinara que o Seu escolhido saísse incólume das provações.
Um livro deste tipo, muito conhecido é a Lenda Dourada, do italiano Jacobus de Voragine, que descreve a vida dos santos cultuados até ao século XIII. Muitos outros escritores se dedicaram a este género literário, entre os quais alguns portugueses, como é o caso dos padres Avelino de Jesus Costa e Miguel de Oliveira.
Pela leitura destes livros, e à luz do pensamento atual, é fácil perceber que as lendas se sobrepõem aos dados históricos, frequentemente muito escassos. Grande parte dos nomes dos santos biografados por Voragine foram-se apagando da memória coletiva. Em Portugal apenas subsistem em topónimos de aldeias, lugares, montes, caminhos, fontes, ou na referência a romarias a locais onde, as ermidas agora existentes, já têm, outros padroeiros.
Um caso exemplificativo de que o culto dos santos também está sujeito a modas é o de São Gens. O próprio nome já nos soa como estranho.
Gens, em latim, significa clã, um grupo de pessoas que compartilhavam o mesmo nome de família. Mais tarde, passou a usar-se como nome próprio, masculino. Em Santarém terá havido uma capela com a invocação deste santo, junto à primitiva muralha.
Os autores que referem este santo não se entendem sobre a sua biografia nem sobre o dia em que o calendário cristão o celebra, sendo apontado quer o dia 16 de Maio, quer o dia 25 de Agosto, isto porque terá existido mais do que um santo com este nome, em épocas diversas e com atributos identificativos também diversos.
No século III d.C. , em Roma, é referido um comediante muito popular que mimava os rituais do culto dos cristãos dessa época. Um dia, a fazer o seu número, foi tocado pela graça divina e não quis, nunca mais, repetir a imitação. Reconhecido como cristão, foi martirizado por causa da sua fé. Os seus atributos são a espada do martírio, a máscara de ator e um violino.
Ainda no século III, em França, viveu um notário cristão, de nome Gens, supliciado por se recusar a registar as leis imperiais contrárias à sua fé.
Em Portugal, o culto a São Gens terá sido introduzido na diocese de Braga no século VI da nossa era. Para aumentar a confusão, a História refere que o sétimo bispo de Lisboa terá sido um venerando Gens, discípulo de um dos discípulos que São Tiago converteu na Península Ibérica.
Este São Gens bispo teria ficado órfão logo que nasceu, pois a mãe morreu no parto.
Numa das colinas de Lisboa, na colina do Monte, na Graça, existe uma capelinha que lhe foi dedicada; mais tarde, confiada aos monges agostinhos, estes mudaram-lhe o nome para Nossa Senhora da Visitação do Monte, conhecida hoje, simplesmente, por Capela do Monte, ao cimo da rua Senhora do Monte, junto ao miradouro do mesmo nome. No alpendre dessa capelinha existia uma cadeira de pedra, muito rústica, onde as mulheres grávidas se iam sentar, implorando a São Gens um parto feliz. A lenda refere que algumas rainhas ter-se-ão sentado nessa cadeira com igual propósito quando esperavam um filho.
A cadeira já não se encontra no alpendre, nem Portugal tem rainhas. Mas, este costume remete-nos para os cultos de fertilidade, tão antigos quanto os homens que, tendo atingido um adiantado estado civilizacional, entendiam a necessidade da continuação da vida animal e vegetal.
São Gens, o notário, pode ser representado com um livro. Igualmente pode ser representado como um agricultor que lavra a terra com um arado puxado por um boi e por um lobo. Estranha parelha! A explicação é simples, tratando-se de um santo e à luz de um milagre: a lavoura fora iniciada com uma junta de bois, mas, um lobo esfaimado atacou e comeu um dos bois. São Gens falou, então, ao lobo que logo amansou e se deixou prender ao arado para que a faina pudesse continuar. Mais uma vez estamos em presença da ideia de fertilidade: a terra que se rasga para receber a semente que se tornará em fruto.
Neste emaranhado de lendas e de personalidades que não são sobreponíveis, encontramos um santo – ou vários – que é padroeiro de diferentes profissões e ajuda para diversas aflições: São Gens, o protetor do bom parto, dos advogados e notários, dos agricultores, das boas colheitas, invocado contra a seca, protetor dos atores e dos músicos, trabalhadores que nem sempre as sociedades protegem como devem.
Descontado o pendor mitológico destas vidas de santos, deparamos, quase sempre, com um veio histórico que nos pode conduzir a um melhor entendimento de como era a vida e quais as crenças dos que viveram muitos séculos antes de nós.