Não é agradável a palavra que dá título a este escrito. Leva-nos a pensar em associações de indivíduos que só querem o mal alheio, gente desprezível, pronta a enganar, sem escrúpulos, e a beneficiar-se com as trapaças que engendra. É palavra curta, fácil de pronunciar, mas que nos deixa, nos lábios e no espírito, um gosto amargo, pelo significado que tem. Colada a si, traz um séquito de infortúnios: o roubo, o saque, o enxovalho para os que são vítimas da corja: os espoliados. Espertos ou ingénuos, todos podem, numa ocasião ou noutra, cair numa ratoeira bem armada para os «aliviar» dos seus bens, quer materiais, quer simbólicos, como seja o bom nome a que se acham com direito. Ao chegar a este ponto, não há quem não maldiga a corja que o humilhou.
No passado, a palavra não era
pejorativa; foi-se aviltando com o tempo, como uma roupa de boa qualidade que
encolheu, ganhou nódoas e borbotos, perdeu a cor e acabou convertida num trapo
sem préstimo, completamente degradado.
Nem sempre, porém, a palavra deu má imagem de si. Já foi uma palavra
digna, usual nas trocas comerciais, na Península Ibérica, com variantes noutros
países mediterrânicos, antes de entrar em descrédito, como a confirmar a
sentença «no melhor pano cai a nódoa».
Afinal, de que falavam os homens
dos séculos XVI, XVII e XVIII quando referiam corja?
Comecemos pelo princípio, como
convém.
Nas línguas faladas na Índia e na
península arábica usavam-se, no século XVI – e, talvez, mesmo, antes – no
vocabulário comercial, palavras que os portugueses, sempre expeditos,
adotaram e fixaram. Assim aparece corja
que significava uma vintena de objetos da mesma espécie. Muitos dos artigos de
luxo que, dessas paragens, as naus traziam até Lisboa, o grande entreposto da
Europa, eram comprados, vendidos e revendidos em corjas, isto é, por grosso;
era o caso da porcelana, dos tecidos de seda ou algodão fino e das pedras
preciosas.
Com a concorrência da Inglaterra
e da Holanda na rota do Oriente, o comércio português decaiu. Os comerciantes,
face à maior procura dos produtos, já inflacionados, acabam, nalguns casos, por
comprar artigos de menor qualidade que, ao serem, depois, negociados, vão sendo
depreciados; «corja» passa a significar um conjunto de coisas reles, de pouco
valor.
E, porque as línguas faladas são
línguas vivas, organismos sempre a crescer e a alterar-se, com novos vocábulos
e novos significados para palavras antigas, corja, antes referida aos objetos,
passou a significar pessoas más, associadas com o fito de prejudicar os outros.
Pouco a pouco, os anteriores sentidos de «vintena» e «coisas sem valor» foram-se apagando, por desuso, da memória coletiva.
Pouco a pouco, os anteriores sentidos de «vintena» e «coisas sem valor» foram-se apagando, por desuso, da memória coletiva.
Restou «a corja», uma palavra
ignóbil, apesar de, como vimos, ser descendente de boas famílias.
Maria
Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.