Coração, não te detenhas |
Palavras Roladas é um espaço de simples reflexão acerca das palavras que usamos na linguagem de todos os dias e, porventura, de outras, menos gastas, quando convier. As imagens visuais hão-de infiltrar-se, seguras da sua eficácia. Palavras roladas, como os seixos que o vento e o movimento das águas afeiçoaram, como frutos. Então, os olhos encontram-nos e a mão recolhe-os e aquece-os um momento para, mais além, os devolver à praia onde outros olhos e outras mãos os hão-de descobrir e dar calor.
27 setembro 2014
GADO DO VENTO
Quando
as hostes romanas, de conquista bélica em conquista bélica, ou por via de
ocupações mais ou menos pacíficas, em alguns territórios, chegaram à Ibéria, já
muito mundo haviam visto e poucas coisas, quer da natureza, quer dos costumes das
gentes, as espantariam.
Vieram
encontrar tribos dispersas ocupando diminutos territórios, vivendo do que a
terra dava, caçando, lutando, por vezes, umas contra as outras, sem organização
política digna desse nome, num estádio civilizacional primitivo, bem diferente
daquele que florescia na Península Itálica e nos espaços mediterrânicos, em
geral, fundados sobre a cultura dos gregos, essas sementes que não deixaram
estiolar, como se comprova pelas urbes que fundaram e pela dinâmica comercial.
Onde
chegavam, pelejando ou parlamentando, havia algo que os romanos sempre
cumpriam: registavam, por escrito, os factos mais relevantes que ocorriam, os
nomes gentílicos, as crenças, as liturgias, os acidentes geográficos, os
factores do clima. Escreveram, assim, os rudimentos da História, da Geografia,
do Direito, da Antropologia, da Teologia, da Linguística…, em suma, usando os
meios próprios do seu tempo e da sua mentalidade, gravaram a memória futura.
Nunca seremos suficientemente gratos aos povos que, sedimento sobre sedimento,
camada após camada, foram cimentando o que hoje – impropriamente – chamamos
«civilização ocidental».
Os
romanos entraram na Península Ibérica, pela primeira vez, nos finais do século
III a.C. ,vin-dos do norte de África, após umas tréguas com os cartagineses. A
sua instalação no sul medi-terrânico e atlântico da Ibéria foi a estratégia
escolhida para evitar que os africanos aí reco-lhessem víveres e homens para a
guerra
Na
Ibéria, segundo os relatos dos letrados, depararam-se com tal quantidade e tão
excelente qualidade de gado equino que logo inferiram que só uma disposição
divina providenciaria tal bênção.
Bóreas,
um deus menor, consubstanciado no vento norte, promovia a fertilização das
éguas que virassem os quartos traseiros na sua direção, durante a noite. Então,
Zéfiro, o vento suave, a aragem, aproximava-se e tocava as fêmeas, de modo que
as crias nascidas dessa união reunissem, em si, as melhores características da
raça: beleza, nobreza, força, velocidade e obediência ao homem. A esses
animais, assim nascidos de forma sobrenatural, davam o nome de «gado do vento».
A
expressão fixou-se e veio a fazer parte do léxico português, alargando o seu
significado, não só aos equídeos, mas a outros animais, apagado já, de há
muito, o mito da memória coletiva. Gado do vento podia ser uma ovelha, um
galináceo, um boi, enfim, qualquer animal doméstico que, saindo do local onde
era habitual estar – a casa do seu dono – fosse aparecer noutro local. Era
comum encontrarem-se animais em propriedades distantes daquelas de onde eram
oriundos, livres, como a natureza os criou.
Para
que houvesse justiça e «o seu a seu dono» se cumprisse, os códigos portugueses,
pelo menos até finais do Antigo Regime, continham normas para se resolverem
estes casos. Durante dez dias, quem recolhesse animais alheios nas suas
propriedades, mantê-los-ia alimentados e em boas condições de alojamento. Se o
legítimo dono os não viesse reclamar, deveria dirigir-se, sob pena de multa, ao
oficial de justiça mais próximo que decidiria do destino a dar-lhes. Não seria,
parece-me, um caso de difícil resolução já que, por todo o país, existiam
muitas instituições prontas a receber dádivas, incluindo o «gado do vento», presente
maior de um deus menor.
Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.
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