Barcelona-Basílica da Sagrada Família (interior) Fotografia de: Maria Amélia Vasconcelos |
Palavras Roladas é um espaço de simples reflexão acerca das palavras que usamos na linguagem de todos os dias e, porventura, de outras, menos gastas, quando convier. As imagens visuais hão-de infiltrar-se, seguras da sua eficácia. Palavras roladas, como os seixos que o vento e o movimento das águas afeiçoaram, como frutos. Então, os olhos encontram-nos e a mão recolhe-os e aquece-os um momento para, mais além, os devolver à praia onde outros olhos e outras mãos os hão-de descobrir e dar calor.
10 novembro 2015
PALAVRAS FUGIDIAS
Precisamos delas, das palavras,
obviamente para comunicarmos, mas, também, para organizarmos o nosso pensamento
e conseguirmos transmiti-lo, o mais próximo possível da ideia que é necessário
exprimir. Pensamento e palavra andam a par, ou, melhor, deveria acontecer
sempre assim para que o discurso não dê aso a qualquer indefinição e não
permita que venham outros, com a melhor das intenções, explicar aquilo que nós
tínhamos querido dizer. A verdade é que o vocabulário é um bem pessoal que
difere em extensão, em precisão e em colorido conforme os falantes e as suas
circunstâncias.
O que acabo de escrever é sabido
de todos, tal como o que passo a referir, o tema da nossa conversa de hoje: as
palavras que não comparecem quando delas precisamos, as fugitivas, as que
«estão mesmo debaixo da língua» e que, no entanto, se escondem nos labirintos
da memória, em cantos escuros e poeirentos, aranhas que se encolhem em bola
quando estamos mesmo a tocar-lhes e aí ficam, imóveis, a rir-se da nossa busca
infrutífera.
Este jogo do gato e do rato
acontece-me com alguma frequência. É então que, de esforço em esforço, vou trazendo
à luz alguns sinónimos (quando existem ou eu os conheço) para amparar um
discurso que tendia para o desequilíbrio. Em marés altas de sorte, deparo com
um, robusto e prestável e o assunto poderá – poderia – ficar, com
clareza, arrumado. Poderia ficar arrumado mas não fica, por teimosia minha,
sempre que o desafio é daqueles que «até dá raiva», de simples. Uma palavra
banal, sem mistério, coçada do uso, escapar-se-me, assim? Não deixo, sem dar
luta. Tal como o gato, não esqueço a presa e continuo a caçar o termo exato
para expressar a ideia, mesmo quando a urgência já se encontra ultrapassada.
Não tenho, verdadeiramente, um método, no que sou inferior ao gato, nem a sua
paciência natural. Esforço-me, contudo, por não perder de vista o objetivo e utilizo
alguns truques, que aqui deixo, não vá ser o caso de algum leitor, tal como eu,
ser vítima das travessuras das palavras fugitivas. Mentalmente – tudo isto é
trabalho mental – ressuscito a ideia e, com ela, vou compondo frases com os
sinónimos, alguns, até, recolhidos do calão; procuro recordar-me da primeira
letra da palavra ou da sílaba da sua terminação; neste último caso, invento
rimas para essa terminação; faço associações livres, recorrendo a campos
semânticos, os mais variados.
Nestas voltas e reviravoltas,
acontece que, às vezes, ganha o gato – eu – que, triunfante, ergue a presa – a
palavra – não para a engolir mas pelo simples prazer da vitória alcançada.
Durante uns dias a palavra mantem-se muito viva, ufana de se mostrar, até que,
pouco a pouco, reencontra o seu lugar na memória, junto das outras palavras
que, como um leque, se abrem como um todo funcional.
Acontece, pois, que uma palavra,
a mais vulgar, pode escapar-nos sem aviso, como uma rã saltando da pedra para o
charco; nem a vemos! Ouvimos «splach» e já fugiu... Descobri-la, depois, leva
tempo, exige determinação e entrega. Só quando a recuperamos é que percebemos que
não há palavras menores, pois todas são grandiosas, se nos fizerem falta para
que as falas não fiquem cinzentas. Desejamo-las bem iluminadas, definidas,
marcantes, porque, a falar claro nos entendemos.
Maria Amélia de Vasconcelos Timóteo
Outubro de 2015
Texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.
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