tem mil faces secretas sob a face neutra…»
Carlos Drummond de Andrade – 1902/1987
Não creio que existam palavras neutras, ou, pelo menos, completamente neutras.
É verdade que nos habituámos a usar umas «bengalas» na linguagem de todos os dias que são pouco mais do que sons sem significado. Exemplos? «Hum,hum; hã,hã; é claro; pois…», as últimas com o sentido de «concordo», como resposta ao interlucotor, final de uma conversa que não leva a lugar nenhum. Algumas destas «bengalas» correspondem a modas que, como é próprio das modas, cairão no esquecimento .Porém, enquanto duram, acrescentam colorido e vivacidade à língua.
Entre os jovens circulam sons, tais como: «ya, fixe, meu, tá», semi-palavras que valem como frases para quem domina o código. Não exigem esforço de elaboração do emissor nem de decifração do recetor; são imediatas, funcionais e efémeras, também; viverão enquanto os falantes lhes conferirem valor coloquial.
O poeta chama-nos para outro tipo de palavras, não, necessariamente, as muito elaboradas ou eruditas, mas as que são operativas, as que suscitam associações, as que têm força para transformar, as que realçam, arredando a névoa, um objeto que, agora, vemos claro, quando descortinamos a sua face oculta.
Para cada palavra mil faces, é liberdade poética, uma hipérbole de artista que sente e sabe, com a sabedoria que vai mais fundo do que os sentidos ou a razão, que, escondidos sob uma qualquer ganga, há tesouros por encontrar. Se não forem mil as faces secretas de uma palavra, que importa, se desvendarmos uma face, aquela face que buscávamos e que se nos escapava, sempre fugidia?
O poeta diz-nos para nos chegarmos mais perto porque, ao longe, tudo é vago e difuso. Perto, sim, porque só de perto se pode contemplar seja o que for, e também as palavras.
O significado de contemplar remete para o sentido da vista e para um certo quietismo perante o objeto que se examina, para que nada escape à análise. Quando se trata de palavras é o sentido da audição que sobressai, ficando a vista reservada para o grafismo com que uma palavra é representada, insonora mas significativa para quem a decifra.
As palavras são, pois, para contemplar. Eu não sabia isso, até ao momento em que contemplei os dois versos do grande poeta brasileiro que, acima, transcrevo.
Maria Amélia Timóteo
Texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.
Sem comentários :
Enviar um comentário