23 agosto 2013

CASINHAS

Nós, portugueses, gostamos de usar diminutivos a propósito de tudo e nada. Usamo-los para as coisas pequenas, ou que queremos fazer crer que o são, desvalorizando-as; mas, sobretudo, com sentido carinhoso ou valorativo. Nesta aceção, ouvimos dizer que fulano tem uma «vidinha» confortável e despedimo-nos desejando «saudinha»; enfim, poderíamos trazer à conversa uma torrente de exemplos para demonstrar que os diminutivos estão, por assim dizer, na ponta da língua da gente lusitana.

Nos encontros SentiArte, uma amiga questionou-me, algumas vezes, acerca de uma canção interpretada por Milú num dos filmes produzidos na década de quarenta do século XX. Eu recordava-me do filme, mas a música que tinha no ouvido era a que os Xutos divulgaram, numa versão rock em que só usaram a primeira estrofe da letra. Porém, neste nosso mundo ágil na comunicação, nada mais fácil do que recorrer à internet, procurar a canção e ouvi-la no original. Foi o que fiz e fiquei surpreendida com a qualidade do som, muito límpido, e pela orquestração, muito rica e trabalhada. No que respeita à letra, ela corresponde a uma certa corrente ideológica cujos valores assentam na pequenez, com ou sem diminutivos, e na felicidade que se alcança (?) sendo-se modesto, humilde e – valor dos valores – não tendo ambições, o que julgo ser contra-natura pois nunca conheci ninguém que não albergasse, dentro de si, uma ambição, qualquer que ela fosse. Resumindo: a canção chama-se, ou é conhecida como «A Casinha», casinha que é uma água-furtada, em Alfama, onde mora uma jovem ladina que, assim reza o refrão, considera que «quase sempre o lar dos pobres/ tem mais alegria». É um retrato da pobreza urbana, assumida e contente (?) com a sua sorte.

O «cancioneiro» nacional de meados do século XX tem vastos exemplos de tal mentalidade. Quem não se lembra de «Uma Casa Portuguesa» onde «fica bem/ pão e vinho sobre a mesa…»? E mais: com «o sol da primavera» a bater nas «quatro paredes caiadas», « basta um pouco, um poucochinho para alegrar/ uma existência singela…». É a versão rural da mesma felicidade urbana que, no dizer da pedagoga Irene Lisboa, consiste em ter uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma.

No programa «Melodias de Sempre» que, há décadas, a RTP transmitia e ia repetindo, lembro parte de uma canção cujo título desconheço. Assim se cantava: «…sem ambições/ cada qual seu pão granjeia/ e à noite há serões/ à luz da candeia.». Tudo se mantém, pois, ordenado, bucólico, sereno, despojado, sem o sobressalto das ambições. A luz da candeia é frouxa, é certo, mas, ainda assim, é uma luz!

O século XX terminou com legítimas ambições: tetos mais altos do que os das mansardas, algumas proteínas e vitaminas sobre a mesa, luz elétrica para que se pudesse ler e espreitar o mundo através de um écran. Na verdade, estas ambições, no século XXI, não foram ainda plenamente alcançadas.
Enquanto escrevo e vou relendo o que atrás fica registado, sinto que a ideologia do pequenino, do poucochinho, se encontra latente, talvez pronta a instalar-se às claras, pois os tempos difíceis são propícios ao baixar dos braços, ao desfalecimento das ambições.
E, sem ambições, e porque elas têm a natureza dos sonhos com raízes na terra, nada prospera. Alerta, pois! E que vivam as ambições!

Maria Amélia Timóteo
Texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.

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