18 novembro 2013

PÃO POR DEUS


Os doces estavam dispostos num tabuleiro, na entrada da casa, como é costume todos os anos. Passou-se a manhã sem que nenhuma criança tocasse a campainha. De tarde também não veio ninguém pedir o Pão por Deus.
Eu sabia da supressão do feriado no dia de Todos os Santos mas, ainda assim, contava com as crianças no final da tarde, depois das aulas, se bem que a tradição dite que só a manhã seja aproveitada para a «esmola» por Deus. Pensei que, talvez, mercê do calendário, a ronda pelas casas passasse para o dia de Fieis Defuntos, calhando, este ano, ao sábado, ou que, como acontece com a quinta-feira de Ascensão, fosse cumprida no domingo seguinte. Esperanças goradas. Este ano, onde moro, não houve Pão por Deus; e tive pena que tal acontecesse.

As tradições, património imaterial dos povos, tendem a esbater-se, sobretudo nos grandes centros em que, vindas de realidades muito diversas, as pessoas levantam as âncoras que as ligavam aos lugares e às práticas dos seus antepassados.

O Pão por Deus tem origens remotas e obscuras.
Os povos antigos cultuavam os mortos, aos quais, em época determinada, faziam oferendas de comida. Era um repasto ritual em que os vivos não participavam. Nas sepulturas eram deixados alimentos, juntamente com luzes que tinham a função de alumiar as almas errantes.
No século VI a Igreja proibiu as demonstrações da crença de uma comunicação entre os vivos e os defuntos. Com o tempo que tudo dilui, o culto perdeu os contornos pagãos e veio a cristianizar-se na instituição do Dia de Finados, a 2 de novembro.
Contudo, a partilha dos alimentos sobreviveu, com variantes, de país para país ou de região para região, tendo como alvo, já não os mortos, mas as crianças – os mais puros – que, de porta em porta, pedem o Pão por Deus.
Esse pão seria, inicialmente, verdadeiro pão, ou o grão para a farinha. A esse alimento foram sendo acrescentados os frutos colhidos no início do outono: romãs, nozes, amêndoas, castanhas. Mais tarde, as broas tomaram o lugar do pão, acompanhando os frutos que se dão, nos Santos, a quem pede o Pão por Deus.
Nalgumas vilas e aldeias de Portugal, as broas dos Santos, diferentes das do Natal, são feitas para consumo só dessa época. Azeite fervente, mel, farinha, canela e erva-doce são os ingredientes que fazem umas broas escuras que se enfeitam, por cima, com a metade de uma noz, antes de irem ao forno.
O dia a dia apressado da vida moderna pode não dar tempo nem alento para a confeção das broinhas. Que não seja essa a desculpa para não atendermos as crianças. O comércio está cheio de coisas boas que alegram os miúdos e são más tentações para os mais crescidos…

Tal como, sem aparente contestação, foi retirado o feriado/dia santo do 1º de Novembro, também poderia ser concertado, entre governantes e governados, que, no domingo seguinte (dia de Todos os Santos) , se haveria de ir pedir o Pão por Deus onde fosse esse o costume. Deste modo, não se apagaria uma tradição de generosidade, ainda que simbólica, que tem unido gerações de um povo.

É que, raiz a raiz, mesmo as capilares, esvai-se a alma coletiva até ao ponto –e para longe vá o agoiro! – em que já não saibamos quem fomos.  

Maria Amélia Timóteo
Texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.