Os doces estavam dispostos num
tabuleiro, na entrada da casa, como é costume todos os anos. Passou-se a manhã
sem que nenhuma criança tocasse a campainha. De tarde também não veio ninguém
pedir o Pão por Deus.
Eu sabia da supressão do feriado
no dia de Todos os Santos mas, ainda assim, contava com as crianças no final da
tarde, depois das aulas, se bem que a tradição dite que só a manhã seja
aproveitada para a «esmola» por Deus. Pensei que, talvez, mercê do calendário,
a ronda pelas casas passasse para o dia de Fieis Defuntos, calhando, este ano,
ao sábado, ou que, como acontece com a quinta-feira de Ascensão, fosse cumprida
no domingo seguinte. Esperanças goradas. Este ano, onde moro, não houve Pão por
Deus; e tive pena que tal acontecesse.
As tradições, património
imaterial dos povos, tendem a esbater-se, sobretudo nos grandes centros em que,
vindas de realidades muito diversas, as pessoas levantam as âncoras que as
ligavam aos lugares e às práticas dos seus antepassados.
O Pão por Deus tem origens
remotas e obscuras.
Os povos antigos cultuavam os
mortos, aos quais, em época determinada, faziam oferendas de comida. Era um
repasto ritual em que os vivos não participavam. Nas sepulturas eram deixados
alimentos, juntamente com luzes que tinham a função de alumiar as almas
errantes.
No século VI a Igreja proibiu as
demonstrações da crença de uma comunicação entre os vivos e os defuntos. Com o
tempo que tudo dilui, o culto perdeu os contornos pagãos e veio a
cristianizar-se na instituição do Dia de Finados, a 2 de novembro.
Contudo, a partilha dos alimentos
sobreviveu, com variantes, de país para país ou de região para região, tendo
como alvo, já não os mortos, mas as crianças – os mais puros – que, de porta em
porta, pedem o Pão por Deus.
Esse pão seria, inicialmente,
verdadeiro pão, ou o grão para a farinha. A esse alimento foram sendo
acrescentados os frutos colhidos no início do outono: romãs, nozes, amêndoas,
castanhas. Mais tarde, as broas tomaram o lugar do pão, acompanhando os frutos
que se dão, nos Santos, a quem pede o Pão por Deus.
Nalgumas vilas e aldeias de
Portugal, as broas dos Santos, diferentes das do Natal, são feitas para consumo
só dessa época. Azeite fervente, mel, farinha, canela e erva-doce são os
ingredientes que fazem umas broas escuras que se enfeitam, por cima, com a
metade de uma noz, antes de irem ao forno.
O dia a dia apressado da vida
moderna pode não dar tempo nem alento para a confeção das broinhas. Que não
seja essa a desculpa para não atendermos as crianças. O comércio está cheio de
coisas boas que alegram os miúdos e são más tentações para os mais crescidos…
Tal como, sem aparente
contestação, foi retirado o feriado/dia santo do 1º de Novembro, também poderia
ser concertado, entre governantes e governados, que, no domingo seguinte (dia
de Todos os Santos) , se haveria de ir pedir o Pão por Deus onde fosse esse o
costume. Deste modo, não se apagaria uma tradição de generosidade, ainda que
simbólica, que tem unido gerações de um povo.
É que, raiz a raiz, mesmo as capilares,
esvai-se a alma coletiva até ao ponto –e para longe vá o agoiro! – em que já
não saibamos quem fomos.
Maria
Amélia Timóteo
Texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.
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