Quente, muito quente, assim entrou o verão este ano e assim se
tem mantido, pelo menos no centro/sul do país. Alguns ameaços de trovoada, sem
efetivas consequências, não têm chegado para descolorir este bom tempo que
reclama por pausas nos afazeres, tempo de férias para quem as pode gozar. E,
quando tal não é possível, uma excursão de um dia, ou de meia dúzia de dias, já
vale para quebrar as rotinas e descansar o espírito.
Há três semanas tive a oportunidade de usufruir de um breve
intervalo que aproveitei para conhecer melhor o País Basco. É um encanto viajar
pela Cordilheira Cantábrica, ver a água deslizar pelos leitos em declive,
adivinhar, entre as copas das árvores, de um verde sempre novo, o solo túmido,
sempre pronto para gerar vida. E o mar sempre por perto, mesmo quando a cortina
vegetal oculta à vista o Golfo de Biscaia.
As cidades, ricas em monumentos e em arquitetura
contemporânea de qualidade, têm vindo a afirmar-se por um crescimento não
agressivo, quer em altura, quer em volumetria. Se existem ou existiram
desequilíbrios ecológicos, eles não se deixam aperceber pelos olhos apressados
dos turistas, esses espreitadores sem tempo para minúcias.
Nunca tinha estado em Guernica.
No entanto, em termos históricos, Guernica era-me familiar,
enquanto cenário de um horror sem ressalvas, muito para além de um episódio
sangrento de uma qualquer guerra. O que se passou em Guernica foi um massacre
intimidatório para memória indelével de contemporâneos e vindouros, para que
não ousassem nunca mais querer o que o poder instituído proibia.
Em termos artísticos, o quadro conhecido com o nome da
cidade, pintado por Picasso em tons de cinzento e negro (que outras cores
poderia usar para representar um alegoria àquela violência gratuita? Talvez o
rubro do sangue e do fogo!), leva multidões a admirá-lo no Museu do Prado. É
assim que Guernica continua a clamar em uivos de dor, uma dor que não conhece
paliativos.
Julgava conhecer, em traços fortes, toda a tragédia. Não
conhecia. Antes deste terceiro ato tinham-se desenrolado os anteriores, menos
divulgados, e resumidos como segue:
1º ato: numa aldeola dos arrabaldes, as mulheres, com as suas
pequenas crianças agarradas às saias, lavavam a roupa no tanque comunitário.
Ouviu-se o roncar dos motores de um avião a partir do qual foi descarregada
sobre o grupo a metralha necessária para fazer o que tinha de ser feito: matar,
estropear, ferir, amedrontar, calar.
2º ato: num domingo, os católicos de três lugarejos assistiam
à missa na única igreja existente. Passou um avião e, sobre aquela comunidade
em oração, foram disparados tiros até que o pequeno templo se desmoronou
esmagando todos os que estavam lá dentro.
De horror em horror, no 3º ato foi usada – testada – uma
bomba para que a terra tremesse e se rasgasse, e nem o carvalho ao redor do
qual, desde tempos muito remotos, os povos se reuniam para administrar a
justiça e decidir do seu rumo, subsistisse. A árvore não terá sido queimada,
assim se diz. Também não foram queimadas as Casas da Junta ou Assembleia,
conjunto de construções frente às quais se dispuseram, fardados, os voluntários
ingleses que estavam no país. Pouparam-se as instituições bascas, os seus
símbolos, ou os estrangeiros, quando ainda era cedo para declarar a guerra ao
Reino Unido, guerra que envolveria grande parte do mundo?
Como recordação, e por amabilidade do guia, trouxe de
Guernica uma folha de carvalho, de um dos muitos carvalhos que por lá se
encontram. Não gostaria de a perder porque gosto de cuidar da memória, mesmo
quando dói.
Maria Amélia de
Vasconcelos
Texto
publicado no jornal da S. C. M. do
Cartaxo.
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