30 agosto 2010

LUCIDEZ

Maria da Luz, ou só Luz, para os colegas, na pressa dos contactos de trabalho, ou Luzinha, como a chamavam a avó e a tia Alice quando dela falavam a amigos ou a conhecidos de maior proximidade…

Nascida em terra de granito e ventos rijos, na casa de família aprendeu bons costumes e bom trato. Alegre e confiante, por natureza, foi encontrando sorrisos e a eles foi correspondendo.

O casamento, tão bem augurado, levou-a para a cidade grande. Em pouco tempo, porém, a relação foi resvalando, de socalco em socalco, para um pântano sem remédio. O primeiro inimigo que ela reconheceu foi o álcool e o seu cortejo de infâmias: vexames públicos, humilhações privadas, palavras que feriam, agressões físicas. Não era, contudo, o álcool o único inimigo. O jogo era a outra face da mesma moeda pela qual a sua juventude fora trocada. Jogo e álcool, ou a inversa, embaciavam, dia a dia, o brilho dos seus olhos.

Depois do nascimento do segundo filho, Maria da Luz começou a confeccionar em casa bolinhos e salgados que vendia às amigas. Valendo-se de velhos conhecimentos dos pais, conseguiu um primeiro emprego, de modesta remuneração, mas que veio acrescentar sustento aos filhos.

Quando algum tempo depois o marido, fugindo ao pagamento de dívidas, abandonou a casa, ela já progredira na empresa. Dessa época, diria mais tarde, entre irónica e séria: "Quando o meu marido me fez o favor de se ir embora…"

Na adolescência dos filhos, acompanhou-os nos estudos e ganhou, ela própria, vontade de voltar a estudar. O bando de amigos dos miúdos abriu-lhe um lugar, de igual para igual, no seu seio. Aqueles com quem mais de perto privava tratavam-na por Luzinha e acendiam, sem o saberem, as velas da memória da infância e um sorriso mais amplo na sua face.

Pouco antes do falecimento da tia Alice, em seu juízo até ao fim, ficou a saber, pela sua boca, que o nome de baptismo fora escolhido pela tia. "Sabes, Luzinha? Quando os teus olhitos se abriram pela primeira vez, vi neles a transparência de um lago atravessado pela claridade da lua, assim…como que o encontro entre o que é profundo e o que é iluminado…Como dizer? Nos teus olhos encontrei lucidez…"

Luz, Luzinha, lucidez…

Para "lucidez", os dicionários não apresentam, como sinónimo, "profundidade". Mas, como encontrar a lucidez, se não descermos ao mais fundo das coisas e não esperarmos que os seus contornos se desenhem na luz?

Maria Amélia de Vasconcelos

Texto publicado no jornal interno da S.C.da M.do Cartaxo.

06 agosto 2010

MAÇÃ


Macieira em flor
O pomar não era extenso. Umas três dúzias de árvores ainda novas, todas do mesmo porte, alinhadas num terreno de leve inclinação, vistas da colina formavam um tapete, tapete branco-rosa de borbotos sedosos que deixavam à mostra uns apontamentos de verde indeciso, tímido como quem entra em cena sem ter o papel bem decorado.

Eram macieiras no esplendor da floração. Lá virá o tempo dos frutos, diremos nós, antecipando o perfume e o sabor de uma maçã.

Nos nossos dias, porém, o tempo das maçãs – e de todos os outros frutos cultivados pelo homem – é todos os dias, para nosso deleite. As estufas, os tratamentos químicos, os frigoríficos, o transporte de longas distâncias, faz com que possamos dispor, em todas as estações do ano, dos frutos que desejamos ou que a bolsa nos permite adquirir. São atractivos, brilhantes, sem mácula, e desafiam-nos nos escaparates dos supermercados, seguros de que não lhes encontraremos defeito. Ah, a não ser, é claro, o perfume, de todo perdido, e o sabor, bem menos intenso depois das andanças a que os sujeitaram.

Haverá uns trinta anos, um fazendeiro ofereceu-me uma maçã-de-espelho, enorme, achatada nos pólos como as da sua espécie, as bochechas rosadas de quem vende saúde. O perfume de uma maçã-de-espelho não tem igual.

Coloquei-a sozinha num prato, a fazer-nos a mais perfeita companhia: beleza, aroma e aquelas bochechas sorridentes que, fosse mais sagaz o nosso olhar, haveriam de partilhar connosco alguma peripécia divertida.

Tenho a vaga memória de que é um pouco ácida a maçã-de-espelho…

Alguém se lembra, ainda, desse sabor?

Maria Amélia de Vasconcelos

Texto publicado no jornal interno da S.C.da M.do Cartaxo.