08 fevereiro 2011

DIA DE...

Vivemos sujeitos, em simultâneo, às dimensões que mais condicionam a vida humana: o espaço e o tempo. Uma e outra podem medir-se, de acordo com escalas convencionais que, alterando-se com o evoluir das civilizações, são, salvo raras exceções, universalmente aceites. Podemos, assim, utilizar palavras como «ano», «mês», «dia», «hora», no que concerne ao tempo, pois estes conceitos são compreensíveis pela maior parte dos povos. Do mesmo modo, a dimensão «espaço» também é entendível, usando o vocabulário específico para as distâncias, os acidentes geográficos, a rosa-dos-ventos, mais a latitude, a longitude, a altitude. Com estes dados nos vamos situando, ao cimo da Terra, usando as palavras que indicam o tempo em que algo ocorreu e as que referem o lugar onde tal acontecimento se deu.

Os povos, necessitando de preservar a memória coletiva, foram registando os acontecimentos mais marcantes das suas vivências. A História, enquanto ciência, e usando os métodos que lhe são próprios, «arruma» essas etapas e estabelece-lhes enquadramentos coerentes.

Para ajudar a manter vivas as lembranças relevantes para a sua coesão, os povos sentiram necessidade de criar os seus «dias nacionais», feriados civis, quando são lembrados os heróis fundadores, as datas dos tratados que criaram os países ou definiram as fronteiras, os artistas, os cientistas, em resumo, destacar os dias em que se pretende estreitar mais os laços em torno da ideia, um tanto ou quanto abstrata, de pátria .Pela mesma razão – estreitar os laços – celebram-se os dias santos que, marcadamente religiosos, interagem, também, com a vida civil, na medida em que influenciam o decurso do quotidiano: comércio encerrado, menos transportes públicos, festejos locais, enfim, as alterações próprias dos dias especiais. Em Portugal, no ano corrente, entre feriados civis e dias santos, teremos, salvo erro, umas catorze datas a assinalar.

Desde há umas décadas, têm sido criados, um pouco por todo o mundo, os «dias de…», às vezes com o intuito de homenagear ou por em relevo uma causa, ou uma categoria de pessoas ( criança, idoso, mulher…), a que nem sempre é alheio o intuito do ganho comercial.. Estes «dias de…» podem ser nacionais, europeus, internacionais ou mundiais, conforme se assinalam em espaços geográficos cada vez mais abrangentes.

Tenho aberta, na minha frente, uma agenda para 2011 e verifico que, por exemplo, em Novembro, o dia 15 evoca a Linguagem Gestual Portuguesa, e o dia 21 celebra o Dia Internacional da Saudação. Não vem mal ao mundo por nos fazerem lembrar a importância da linguagem gestual. E é bom não esquecer, também, que o mínimo que podemos fazer, é saudarmo-nos uns aos outros, prática, aliás, a cair em desuso, mas que não deveríamos deixar cair, pelo menos quando entramos ou saímos de um local onde se encontra alguém, conhecido ou não. Saudar, com a voz ou o gesto, é «salvar», «dar a salvação», desejar o bem-estar, a saúde ao nosso semelhante. Mas, pergunto-me se andaremos tão distraídos com o que se passa, que tenha de se criar «um dia» que nos assinale aquilo que deveria fazer parte da nossa mais elementar memória.

No mês de Maio, os «dias de…» são, ao todo, 16! Destes, três têm mais do que uma causa a destacar. O dia 31 evoca o Pescador, e só temos que aplaudir, agradecidos, todos os dias, quem exerce uma profissão tão dura e perigosa. O mesmo dia, é «Dia Mundial sem Fumo», o que me confunde um pouco, pois não alcanço o seu exato significado. Não lançar mais fumo para a atmosfera, já tão saturada e enferma? Excelente razão! Impedir que se faça a fogueirita fumarenta onde se hão-de assar as primeiras sardinhas da época quente? Não lançar foguetes? Não acender velas votivas? Dar descanso aos bombeiros que, a 28 do mesmo mês, têm o seu «dia mundial»? Repito: este «dia sem fumo» vai além do meu entendimento. Talvez mereça, mesmo, uma refleção séria, ponderando todas as razões para não haver fumo, as quais serão, naturalmente, muitas. Ocorre-me agora que – quem sabe? – possa ser o dia em que os sinais de fumo, linguagem antiquíssima, estarão, de todo, proibidos…

Em todo o caso, hei-de estar atenta à data para não destoar das boas intenções com que, mundialmente, foi criado este «dia de…».

Maria Amélia de Vasconcelos

Texto publicado no jornal interno da S.C.da M.do Cartaxo.

01 fevereiro 2011

AS UNHAS DO TEMPO

As unhas do tempo
não se desgastam

Riscam sem descanso
nos umbrais das madrugadas
as pedras os musgos
a corrente dos rios
e tecem os fios tensos
que ajustam
os gravetos dos ninhos
cunhais das moradas
e marcam as aladas viagens
das sementes.

As unhas do tempo
no exacto tempo em que escrevo
escavam imparáveis
reconhecíveis sinais
de permanente mudança
das cores vivas ao desmaio
até ao denso cinzento
das estátuas.

Num momento
nós e as coisas
mesmo a rosa a rosa
de pele de espuma
dilacerados
apartados do ser e do sentir

imprestáveis coisa nenhuma
sem contorno ou dimensão
cortina a dividir
os astros de outros astros
átomos em suspensão a pairar
escassamente duráveis
segundo a humana compreensão
somos a presa das unhas do tempo
seu perene sustento
o alimento
da poeira estelar.

Maria Amélia de Vasconcelos