O calendário marca, na roda do ano, as épocas próprias para as diferentes festas. Cumprindo o estabelecido, foi a vez do Carnaval, ou Entrudo, festa móvel que, neste ano, «caiu» em Março. Em rigor, o Carnaval não se reduz a um dia especial; é, antes, uma época, relativamente alargada, que se estende desde o dia de S. Vicente – 22 de Janeiro – até Terça-feira Gorda, o último dos três dias «gordos» que incluem a segunda-feira e o domingo anteriores.
As origens do Carnaval são remotas e, como quase sempre acontece com as tradições que perduram, assentam em crenças religiosas que, de uma forma ou de outra, se relacionam com os ciclos da Natureza.
Os romanos, herdeiros e divulgadores de muitos cultos religiosos, que assimilaram com a mesma avidez com que submeteram, militarmente, os mais diversos povos, reabilitaram o arcaico deus grego Cronos – o Tempo – sob a denominação de Saturno. Cronos detinha a foice mágica que cortava o tempo velho (o inverno) para permitir a entrada do tempo novo – a primavera. Nos territórios do império romano, o culto de Saturno (Cronos) foi amplamente difundido. No inverno, entre os finais de Dezembro e Fevereiro, nos bosques, realizavam-se festas noturnas – as saturnálias – em que, ao redor de fogueiras, homens e mulheres se entregavam a danças rituais, vestidos de branco, roupagem da deusa egípcia Hathor, deusa lunar, interveniente na passagem das almas da vida terrena para vida eterna, também ela adotada pelos romanos, e com lugar no panteão. Estas festas, transversais a todas as classes, incluíam o consumo excessivo de comidas e bebidas, o que levava a uma desmesura nos costumes que não era tolerada em qualquer outra época do ano. À ideia de renovação andavam associadas lendas e superstições: era necessário deitar fora o que era velho e receber, de Saturno, aquilo que era novo, o vigor que só os deuses podiam transmitir aos homens. Imbuídos do novo, os povos participavam da energia cósmica que era patente no despontar das árvores e no desabrochar das primeiras flores. Em linguagem coloquial dos nossos dias, diríamos que os povos «carregavam baterias».
Com o estabelecimento do cristianismo, no século IV, a Igreja procurou que as celebrações das saturnálias se conformassem, tanto quanto possível, com os preceitos doutrinais. Nos diferentes estados que se formaram após a queda do império romano, as festas foram ficando confinadas a um período de tempo mais restrito, mudando-se o seu nome para «Carnaval», e foram sujeitas a leis que visavam moderar o desregramento e a violência.
No período do Renascimento, em Itália, o Carnaval era pretexto para festas sumptuosas. Os grandes senhores, servidos por artistas talentosos, disputavam a glória de serem recordados por promoverem os divertimentos mais criativos. A coberto das máscaras, recuperadas do antigo teatro grego, e das pequenas mascarilhas, mais cómodas de usar, os foliões noturnos davam livre curso aos seus intentos. Durante o dia, realizavam-se desfiles subordinados a um tema, como acontece, presentemente, no Carnaval do Rio de Janeiro, o mais popular à escala mundial graças aos meios de comunicação global.
Carnaval é uma palavra francesa usada em quase todas as línguas e derivada de «carnelavare» que, no dialecto da Toscânia ( norte de Itália) significa «levar» ou «retirar» a carne. Como se entende, a palavra indica a chegada da Quaresma e a consequente obrigação do jejum. O termo «Entrudo», só usado na Península Ibérica», advém diretamente do latim «introitu» que significa «entrada», a entrada da Quaresma, período de purificação que se inicia na quarta-feira de cinzas.
Em Portugal, uma disposição régia de 1542, determinava que não se realizassem os trabalhos da chancelaria até quinta-feira, o que indica que, depois dos folguedos, a quarta-feira de cinzas era dia assinalado, não sabemos se por ser o primeiro da Quaresma se por ser necessário descansar.
A tradição de um Carnaval agressivo, que não poupava ninguém, foi-se diluindo com o passar dos tempos, mercê, também, de leis, como a de 1817, que proibia as brutalidades da quadra.
O Carnaval continua vivo, por esse mundo fora. Brincar faz bem ao corpo e à mente, com conta, peso e medida, como é uso dizer-se, ou não vivêssemos numa sociedade organizada, pronta para punir todos os carnavais excessivos e, por maioria de razão, todos os carnavais fora de época.
Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no Boletim Informativo da S. C. da M. do Cartaxo.
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