- Não. É linda!
- Quem seria?
- Uma amiga da avó, talvez. Nunca te falou dela?
- A mim?! Eu era uma criança quando a avó faleceu.
A fotografia, a preto e branco, todas as gradações intermédias de cinzento, entre sombra e luz, moldando as formas, foi passando das mãos de uma para as mãos da outra.
Permanecia íntegra, sem amarelecimentos, sem vestígios de humidade, dentro de um envelope rígido, esse, sim, acusando a usura do tempo. O selo branco de um fotógrafo londrino marcava o cartão da capa no canto inferior direito. Folheando, seguia-se o papel translúcido, com finas aranhas em relevo, a proteger o rosto oval e o colo de uma mulher adulta, jovem ainda, uns olhos líquidos, penetrantes, e um quase sorriso, um jeitinho na boca de quem pronunciaria uma palavra se o flash não tivesse disparado antes.
- É obra de um artista. Repara nos ornamentos do contorno, como que uma moldura…- E o tule bordado da blusa, ou vestido? Que delicadeza nos pormenores!
Na base, sobre o diluído pregueado da roupa, a dedicatória: «To my dear friend, Mrs. …». Pouco mais conseguiram decifrar. Aquela caligrafia alta, inclinada, com hiatos entre cada letra, era críptica. O nome da avó não oferecia dúvidas. Àcerca da assinatura, em letra mais miúda, tal como a última das cinco linhas, não estiveram de acordo. A inicial caprichosa do nome próprio podia ser um «E», um «L», ou um «F»…
- Ficas tu com a fotografia?- Porquê eu? Fica tu. Podes emoldurá-la, até.
- Sim? E diria que era quem? Uma tia?
- Não tens de explicar nada. Podes dizer, simplesmente, a verdade: que era uma amiga da avó, uma senhora inglesa.
Durante semanas, a foto foi ficando sobre a cómoda onde fora encontrada, enquanto a casa ia ficando vazia.
Quando chegou a vez da cómoda ser retirada, a fotografia foi transferida para o peitoril da janela, e de novo admirada e discutido o destino a dar-lhe. Não representando nenhum familiar, nem os de sangue, nem os dos afectos, não fazia sentido guardá-la.
Incomodava, a ambas, deitar fora uma imagem tão bela. Sim, mas primeiro teria de ser destruída. Um rasgão, a meio; depois outro, outros, até restarem só pedacinhos que, a esmo, foram lançados no saco dos papéis para reciclar.
De quando em quando, o enigma da senhora inglesa vinha à conversa. Originou, até, uma espécie de aforismo familiar:
«- Olha? Isso é como a fotografia da inglesa: ninguém sabe, ao certo…».
Porém, como nada se perde, em qualquer parte do mundo, alguém terá escrito, ou há-de escrever, um poema, uma mensagem banal, uma carta definitiva, um relatório, um mapa de tesouraria, um atestado, nas fibras que fixaram, nos anos vinte do século vinte , a imagem de uma belíssima mulher.
Definitivamente, só existimos, no futuro, enquanto alguém guardar a nossa memória.
Depois, havemos de ser, algures, outra coisa qualquer.Maria Amélia de Vasconcelos
Publicado no jornal interno da S. C. da M. do Cartaxo.
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