14 maio 2012

LÍQUIDO

A chuva que caiu nas últimas semanas – abençoada chuva cuja ausência, na época em que era esperada, tanto preocupou os portugueses, por causa da memória coletiva de prolongadas secas – a chuva, dizia eu, abre-me caminho para reflexões acerca das qualidades inerentes à condição do que é líquido.

O planeta Terra, a nossa grande casa, a grande mãe que nos sustenta a todos, animais e plantas, é predominantemente líquida. É uma casa com fundações, paredes e tetos feitos de mares, lagos e rios; só as portas, as janelas e o mobiliário serão de terra firme e, ainda assim, por baixo e por entre essa visível consistência deslizam veios de sangue e linfa, os líquidos que dão vida e equilíbrio aos seres.

Os mamíferos, desde a conceção ao nascimento, habitam o meio líquido, aí flutuam e aí se desenvolvem. Uma vez saídos do ventre materno, procuram alimento no leite, leite que «sobe», como dizemos quando se trata de partos dos humanos. «Sobe», isto é, brota do mais profundo até à superfície, como uma fonte que só em determinados momentos escorre. É uma expressão muito poética, esta, a subida do leite. A mulher que deu à luz sofre uma pequena febre, um calor que assinala o movimento de vida que é o jorrar do líquido que vai alimentar o seu filho, até então nutrido do que a nutria. Continua-se, assim, o elo mãe-filho através da alimentação, a par dos afetos que são alimento também.

Os frutos, quando maturados em extremo, destilam líquidos, xaropes densos que tendem para a putrefação porque é líquida a vida como líquida é a morte. Considerando, ainda, os frutos, muitos são esmagados, liquefeitos, para deles só usarmos o sumo. Quem não aprecia uma limonada no calor do verão? O mercado encheu-se de sumos, com polpa ou sem polpa, que consumimos durante todo o ano, às vezes com pouco critério, não levando em conta, como coisa de somenos, alguns malefícios que podem causar à saúde.

Porém, o líquido mais divulgado em todo o mundo é o vinho. De um cacho de uvas espremido sai o mosto, o sumo açucarado que, umas escassas horas depois, deixa de o ser, distante, já, do que lhe deu origem; modificado por processos químicos naturais, perdeu em doçura o que ganhou em álcool.

O homem conhece essa metamorfose desde as mais remotas civilizações, tal como conhece a alma, a força, a natureza da alquimia que transmuta frutos numa bebida digna de deuses, que a requerem para a celebração dos mistérios e para o apaziguamento de tormentas naturais, mitificadas, como as trovoadas, os terramotos, as inundações e as secas.

Com o vinho se brinda à saúde e ao sucesso de quem queremos festejar, por entre vivas e palmas. Com o vinho, sorvido sem critério, engolido sem que se lhe tome o aroma nem o paladar, se destroem vidas promissoras, escravas de um vício.

À volta do vinho há toda uma cultura no mundo ocidental. Só o café pode, ainda que palidamente, comparar-se-lhe. A estes dois líquidos conviviais falta juntar o chá, rei nas culturas orientais, também ele muito apreciado entre nós.
Os três líquidos celebrativos são capazes de fazer sentar, à volta da mesma mesa, um grupo que busque a harmonia e o entendimento.

Não é, porém, «líquido» que a simples ingestão de uma bebida chegue para alcançar tão altos propósitos. E é pena que não seja, assim, tão fácil….

Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no jornal da S. C. da M. do Cartaxo.

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