17 outubro 2014

ALVANEL

Ensinaram-nos na escola que as palavras começadas por «al» derivam do árabe. É o caso da palavra que escolhi para título deste escrito.

A língua portuguesa formada, na sua maior parte, com base no latim, recebeu – e continua a receber – muitos contributos de outras línguas com as quais esteve, e está, em contacto. Esse aumento vocabular faz com que o português seja uma língua muito rica e diversificada, com variantes locais para uma mesma palavra ou, até, palavras diferentes para designar um mesmo objecto, dependendo da proveniência dos falantes.

Logo a seguir ao latim em termos de importância no nosso falar, vem o árabe, sem tirar, é claro, o valor e o lugar ao grego que nos legou, entre outros, os termos usados, sobretudo, nas ciências.

Mas são as palavras árabes que hoje irão «rolar». Para começo, apresenta-se uma muito distante da tal regra que aprendemos, pois até nem começa por «al».

Trata-se de «divã», aquela cama estreita, encostada à parede, antepassada do sofá-cama.

Em árabe, «divã» significava na Turquia e na Península Ibérica, o conselho de ministros do sultão, passando, depois, a designar a sala onde esse conselho se reunia. Como se chegou ao significado actual? Sobre esse caminho não tenho certezas. São, assim, as palavras: vivas, buliçosas, irrequietas. Elas renovam-se, mascaram-se, reinventam-se. Vivem novas vidas, conforme se mudam os tempos.

Alvanel, que também era dito «avenel, alvaner, alvanir e alvaréu» não se adaptou a modas e, simplesmente, desapareceu do nosso convívio pelo que é, no geral, ignorada. Quem não aparece, esquece, verdade? No Alentejo sobreviveu até finais do século XIX, conforme se pode comprovar pelos registos paroquiais. No resto do país já não se usava desde o século XVII, sendo substituído por pedreiro. Um alvanel é, afinal, um pedreiro.

O nome antigo vem do árabe e significa «aquele que constrói». A palavra deixou um leve traço da sua presença em «alvenaria» que se usa (pouco, é certo) quando se trata de uma construção robusta, de paredes grossas, feitas de pedras ligadas com uma argamassa (cal, areia e água). Daí a expressão popular «estar de pedra e cal», significando ser resistente, não oscilar, perdurar no tempo e no espaço.

O alvanel exerceu o seu ofício antes da tecnologia ter avançado com o cimento, as armações de ferro e as cofragens que são métodos construtivos dos nossos dias. Foi ele o construtor de igrejas e catedrais, palácios, pontes, aquedutos, moinhos…; deixou obras que ainda estão patentes aos nossos olhos.

Ao seu lado trabalhavam outros profissionais com o mesmo material: a pedra.

Eram eles os mestres da pedra talhada, os que a cortavam em blocos regulares e que também preparavam as molduras de portas, janelas e rosáceas; e os escultores, chamados «mestres de pedraria». Era do seu encargo esculpir os motivos simbólicos e decorativos que admiramos nas construções mais elaboradas.

Nesta grande empresa de erigir maravilhas de técnica e arte, os homens que, conforme a sua especialização, trabalhavam a pedra, eram apoiados por outros profissionais que executavam um trabalho quase escondido, porém indispensável: os carpinteiros. Todos já vimos a armação de um telhado, em madeira. São traves, barrotes, pendurais, formando uma teia segura e bela.

Transpondo estas obras mais comuns para os pináculos das mais altas catedrais, lembrarei que eles se mantêm, desde há séculos, sustentados por complicadas armações de madeira, restauradas quando necessário. Sem estas armações permanentes não veríamos campanários e agulhas apontando os céus, desafiadoramente.

Pedreiros e carpinteiros, desde o tempo das confrarias de ofícios, têm um patrono comum: São José. Nas procissões religiosas, o lugar que ocupavam estes profissionais era destacado, como reconhecimento do valor do seu trabalho.

Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.

12 outubro 2014

In tensão

TOPONÍMIA

Um objecto e o nome pelo qual o mesmo é conhecido partem de necessidades diversas, porém inseparáveis. O nome surge depois, para definir o objecto, no seio do universo de falantes da mesma língua; acrescentar-lhe o que seja, pode torná-lo um pleonasmo, por vezes anedótico.

O nome atribuído a um local forma-se, frequentemente, a partir das condições naturais desse mesmo local, quer se trate de um monte, de um vale ou cova, de um rio ou riacho, de uma floresta ou de uma árvore. Na nossa língua, muitas localidades devem  a sua designação à respectiva situação geográfica, o lugar onde, por comodidade ou por defesa contra inimigos, se agregou o primitivo núcleo populacional. Também é comum encontrarmos, em Portugal, povoações cujos nomes radicam em equipamentos atribuídos a habitantes mais remotos. É o caso de designações como: ponte, moinho, castelo, torre, porto, vila, e tantos outros.

No traçado interno das povoações – ruas, travessas, becos, escadas – a necessidade de marcar com um nome o sítio de residência, ou de um qualquer prédio, é evidente. O mais comum, modernamente, é dar a esses elos da malha urbana nomes de personalidades relevantes, nomes de outros países ou das suas capitais ou datas importantes na História nacional ou local.

É um estudo interessante verificarmos, numa povoação, a permanência ou a alteração da toponímia, num determinado período.

Nos assentos paroquiais do Cartaxo do último quartel do século XIX – consultados em razão de outras pesquisas – encontrei nomes de arruamentos que ainda se mantêm. O adro da igreja paroquial, em 1877, era, indiferentemente, designado por «adro» ou por «praça de São João Batista», hoje Largo de São João Batista. É abundante a alusão à rua de São Sebastião, à Ribeira (já não «Cartaxinho»), ao Valverde – território extenso onde havia vinhas e olivais - , ao Gil, ao Algar, à Boavista, à rua Velha, entre outros locais que ainda são conhecidos pelos nomes, a par de outros, os oficiais. No espaço alargado do Valverde, cortado por várias artérias, houve que encontrar uma toponímia que as identificasse nos nossos tempos.

Pela análise dos assentos paroquiais, descobrimos algumas das atuais ruas, agora «rebatizadas», cujos antigos nomes alguns ainda recordarão. Como exemplos, vejamos os que se seguem: rua do Carril / rua Serpa Pinto; rua d’Além / rua José Ribeiro da Costa; rua Direita / rua Mouzinho de Albuquerque; rua do Jogo de Baixo / rua Dr. Júlio Montez; rua dos Casais / rua 5 de Outubro; rua da Carreira / rua Batalhoz. Também há referências à Praça Nova que, presumo, será a atual Praça 15 de Dezembro, a qual todos os cartaxenses conhecem como «Largo da Praça» ou, simplesmente, «Largo».

Entre os nomes que não mudaram nestes quase cento e cinquenta anos, destaco a travessa do Nogueira, a travessa do Gil, a rua (?) das Palhoças e a rua (?) do Cardador, para além da já citada rua de São Sebastião, onde existiu a capela de estilo manuelino, de evocação deste Santo protetor dos leprosos, na saída do Cartaxo em direção de Santarém.

Não me é possível localizar, no atual traçado urbano do Cartaxo, o casal do Barbosa nem o casal da «Gocharia». O mesmo se passa com a travessa dos Sapos e…imagine-se, a rua das Malucas! Em tais sítios, de nomes tão pouco apresentáveis, nasceram, tiveram morada ou faleceram, em tempos não muito recuados, cidadãos cartaxenses.

Quando, com a República, foi criado o Registo Civil, não custa a crer que esses cidadãos sentissem algum incómodo ao terem de declarar a morada.

Ou porque a toponímia mudou, ou porque se destruíram caminhos para dar lugar a ruas, o certo é que, que me conste, tais denominações desapareceram. Quem delas, hoje, se lembrará? Contudo, são História e, como tal, vo-las entrego.
Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.