17 junho 2015

Algures, na rota dos Picos da Europa - 2014

Foto de: Maria Amélia de Vasconcelos
                                                                            

CHAFARIZ

Escrevo no dia de Santo António, o santo português nascido em Lisboa e que o mundo cristão conhece, sobretudo, como «de Pádua», a cidade italiana onde viveu, pregou com elevada erudição e faleceu, em cheiro de santidade, com, aproximadamente, trinta e seis anos de idade.

Contemporâneo de São Francisco, o testemunho espiritual que nos legou reflete a sua sabedoria e amor ao próximo. A fé popular encarregou-se, porém, ao longo dos séculos, de envolver a sua figura austera em lendas, de recorte variado, compondo cenários nos quais ocorrem milagres «suaves» como o conto que Eça de Queiroz escreveu, milagres singelos para a satisfação de preces inocentes ou, até, para resolver acidentes de pouca monta, como é o caso das bilhas quebradas por causa de namoricos à beira de um qualquer chafariz.

O quadro-tipo destes milagres é, com ressalva de pormenores, o seguinte: uma moça de aldeia, ao findar do dia, depois da faina no campo ou nas lides caseiras, pega no cântaro de barro e vai enchê-lo à fonte ou a um poço. Depois de cheio, coloca-o à cabeça no preciso momento em que, detrás de uma sebe, lhe aparece o namorado ou o rapaz que a requesta. Assustada ou emocionada com o encontro, a rapariga perde o equilíbrio e a bilha faz-se em pedaços, caída a seus pés. Sem recipiente, como recolher a preciosa água? E é água, mas salgada e em torrente, que, então, lhe cai pelas faces. Que lhe valha Santo António naquela aflição! O santinho, condoído, acorre a restaurar, pedaço a pedaço, (ou terá sido com um simples estender da mão, ou com um sorriso, ou com um olhar?) a infusa que, retornando à fonte, se enche de novo, mais inteira do que quando o oleiro a deu como pronta.

Há dezenas de lendas que atribuem milagres deste género a Santo António, um santo muito querido dos portugueses, e não só. Um pouco por toda a parte, no mundo católico, há imagens de Santo António nos altares, havendo casos em que lhe são dedicadas capelas; emociona encontrá-las em países tão distantes do nosso. Em Roma, a igreja de que é orago é também conhecida como «igreja dos portugueses».

O tema «Santo António» preencheria várias páginas, livros inteiros, até. Talvez em futuras «Palavras Roladas» calhe voltarmos ao assunto. Hoje, o título do artigo é «Chafariz»; assim o pensei, assim o mantenho. Mas, tal como as cerejas, que se vão comendo sem darmos por isso, assim são as palavras: marcamos-lhes um rumo e desviam-se, fogem à nossa regra, tornam-se, por assim dizer, donas do seu destino, rolando, rolando...Precisamos de lhes dar uma voz de comando inequívoca se queremos garantir o nosso propósito.

Ora, pois, chafariz é uma palavra de origem árabe – quem diria? – uma das que nos ficou, bem firme, na linguagem comum. Inicialmente, o termo correspondia, também, a cisterna, poça de água, bebedouro, lavadouro público. Enquanto «poça de água» era, de facto, uma fonte de mergulho, uma espécie de tanque em que se mergulhavam as vasilhas para as encher. Os preceitos de higiene vieram proibir esse método de abastecimento, perigoso para a saúde pública, quanto mais não fosse, porque os animais bebiam também, diretamente, desses tanques. Um documento da Chancelaria de D. João I, de finais do século XIV, manda que se faça «um chafariz para beberem bestas...», prova de que, na ressaca da peste negra, se entendia que os humanos deveriam servir-se de fontes cujas águas não fossem contaminadas por animais.

No século XVIII, D. João V dedicou uma atenção especial ao abastecimento de água às populações, mandando sanear nascentes e fontes, encanar a água e fazê-la sair, mais ou menos, límpida, de muitos chafarizes nos territórios que compunham o Portugal de então. Alguns deles são edificações barrocas elaboradas, rematadas pelo escudo régio, uma marca de poder que valia uma assinatura.

Para terminar, deixo-vos o desafio: numa próxima viagem, dentro ou fora do país, atentem nos chafarizes. Talvez vos espere uma bela surpresa. Um milagre? Só se for o do bom senso e do bom gosto com que os antigos cuidaram, em sentido largo, de dar de beber a quem tem sede.

Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no jornal da  S. C. M. do Cartaxo.

Brincos de Princesa - Funchal, Ilha da Madeira - 2009

Foto de: Maria Amélia de Vasconcelos

MAIO, MADURO MAIO...

Assim começa uma das baladas que José Afonso cantou e que continuamos a ouvir, sempre com a emoção que produz uma bela música à qual se junta a poesia, tão acertadas uma com a outra que parece terem nascido de um mesmo fôlego de inspiração.

Maio é o mês de transição entre o frio e o calor, o inverno e o verão, o ponto médio entre a dormência da natureza e a sua revitalização. Chamamos-lhe «o mês das flores»; a Igreja Católica dedica-o à Virgem Maria. Quando referimos «o mês de Maria», é de maio  que falamos, associando a delicadeza das flores à figura da Senhora que, em Fátima, se manifestou, pela primeira vez, em maio, aos pastorinhos.

Por detrás destas conhecidas e atuais denominações, existe um fundo muito antigo que remonta às crenças e cultos dos povos que nos antecederam, povos cujos conhecimentos não eram científicos, demonstrados por experiências exatas e sistemáticas, mas colhidos pela observação dos fenómenos naturais, como o crescimento de animais e plantas e o movimento dos astros. Assim se foi estabelecendo um sistema de crenças, práticas religiosas e atividades de subsistência que regulava a vida social de cada tribo e que tinha como suporte um sincretismo que não era questionável.

Como é próprio do ser humano, os momentos de festa, tão necessários ao corpo e ao espírito, ocorriam no tempo determinado, interrompendo o labor do dia a dia. Não existia o conceito de férias mas eram frequentes as festas de caráter sagrado, obrigatórias para toda a comunidade.

A mãe do deus Mercúrio, Maia, era cultuada na Roma antiga. O seu nome foi atribuído ao quinto mês do calendário juliano e as festividades, no 1º e 15º dia do mês, atingiam o seu ponto máximo. No primeiro dia, as portas das casas eram enfeitadas com flores, assinalando o bom tempo e, também, o mito segundo o qual a deusa enfeitava o filho, enquanto bebé, com flores amarelas.

Os celtas também realizavam, em maio, uma festa de índole mágico-religiosa visando a fertilidade, em honra do deus Beltane ou Beleno, nome que significa «o fogo sagrado». Esta festa ocorria na primeira noite de lua cheia de maio.  O lume de todas as casas da aldeia era apagado, após o que, no cimo de um monte, se acendia uma fogueira a partir da qual se iam acendendo fogueiras menores. Destas, eram retirados os tições, de modo que o lume pudesse, de novo, brilhar em cada lar, um novo lume, início de um novo tempo. Ao redor das fogueiras, o povo dançava, cantava e comia até raiar a aurora.

Em Portugal subsiste, ainda, o costume de enfeitar portas e janelas com ramos de giesta, um arbusto de flores amarelas a que, no norte, chamam «maias». Consideradas pagãs, estas decorações e festas foram proibidas, pelo menos até ao século XV. Mas a tradição era mais forte e, na prática, nunca foram abandonadas. Em Trás-os-Montes, na festa das maias, comem-se castanhas já secas ou piladas. Nalgumas aldeias, as jovens enfeitavam de flores um menino – o Maio-Moço – e mostravam-no, de rua em rua, cantando e dançando. No sul do país, havia o costume de as meninas se vestirem de branco, adornadas de flores e de se sentarem às portas, ou num largo, enquanto as amigas pediam uma moeda a quem passava. No Algarve, na zona de Lagos, ainda se fazem bonecas a que chamam maias, um artesanato urbano moderno, com raízes no tempo em que se faziam bonecas com palha de centeio, coroadas de flores.

Tanto quanto julgo saber, no Ribatejo não há vestígios da tradição das maias. Lembro-me, porém, quando era criança, que, na manhã do 1º de maio, deveríamos sair cedo da cama para que «o maio» - personificado como coisa nefasta, a modos de um «mau-olhado» - não viesse atrasar-nos a vida.

Madrugar não era fácil para mim, que sempre preferi seroar. Em todo o caso, esses maios de manhãs bem dormidas, sem alvoradas por via de costumes ancestrais que desconhecia, parecem-me ter sido inofensivos. Ou será que tenho andado enganada este tempo todo?


Maria Amélia de Vasconcelos 
Texto publicado no jornal da  S. C. M. do Cartaxo.
Ilha da Madeira - 2009

Foto de: Maria Amélia de Vasconcelos