17 junho 2015

CHAFARIZ

Escrevo no dia de Santo António, o santo português nascido em Lisboa e que o mundo cristão conhece, sobretudo, como «de Pádua», a cidade italiana onde viveu, pregou com elevada erudição e faleceu, em cheiro de santidade, com, aproximadamente, trinta e seis anos de idade.

Contemporâneo de São Francisco, o testemunho espiritual que nos legou reflete a sua sabedoria e amor ao próximo. A fé popular encarregou-se, porém, ao longo dos séculos, de envolver a sua figura austera em lendas, de recorte variado, compondo cenários nos quais ocorrem milagres «suaves» como o conto que Eça de Queiroz escreveu, milagres singelos para a satisfação de preces inocentes ou, até, para resolver acidentes de pouca monta, como é o caso das bilhas quebradas por causa de namoricos à beira de um qualquer chafariz.

O quadro-tipo destes milagres é, com ressalva de pormenores, o seguinte: uma moça de aldeia, ao findar do dia, depois da faina no campo ou nas lides caseiras, pega no cântaro de barro e vai enchê-lo à fonte ou a um poço. Depois de cheio, coloca-o à cabeça no preciso momento em que, detrás de uma sebe, lhe aparece o namorado ou o rapaz que a requesta. Assustada ou emocionada com o encontro, a rapariga perde o equilíbrio e a bilha faz-se em pedaços, caída a seus pés. Sem recipiente, como recolher a preciosa água? E é água, mas salgada e em torrente, que, então, lhe cai pelas faces. Que lhe valha Santo António naquela aflição! O santinho, condoído, acorre a restaurar, pedaço a pedaço, (ou terá sido com um simples estender da mão, ou com um sorriso, ou com um olhar?) a infusa que, retornando à fonte, se enche de novo, mais inteira do que quando o oleiro a deu como pronta.

Há dezenas de lendas que atribuem milagres deste género a Santo António, um santo muito querido dos portugueses, e não só. Um pouco por toda a parte, no mundo católico, há imagens de Santo António nos altares, havendo casos em que lhe são dedicadas capelas; emociona encontrá-las em países tão distantes do nosso. Em Roma, a igreja de que é orago é também conhecida como «igreja dos portugueses».

O tema «Santo António» preencheria várias páginas, livros inteiros, até. Talvez em futuras «Palavras Roladas» calhe voltarmos ao assunto. Hoje, o título do artigo é «Chafariz»; assim o pensei, assim o mantenho. Mas, tal como as cerejas, que se vão comendo sem darmos por isso, assim são as palavras: marcamos-lhes um rumo e desviam-se, fogem à nossa regra, tornam-se, por assim dizer, donas do seu destino, rolando, rolando...Precisamos de lhes dar uma voz de comando inequívoca se queremos garantir o nosso propósito.

Ora, pois, chafariz é uma palavra de origem árabe – quem diria? – uma das que nos ficou, bem firme, na linguagem comum. Inicialmente, o termo correspondia, também, a cisterna, poça de água, bebedouro, lavadouro público. Enquanto «poça de água» era, de facto, uma fonte de mergulho, uma espécie de tanque em que se mergulhavam as vasilhas para as encher. Os preceitos de higiene vieram proibir esse método de abastecimento, perigoso para a saúde pública, quanto mais não fosse, porque os animais bebiam também, diretamente, desses tanques. Um documento da Chancelaria de D. João I, de finais do século XIV, manda que se faça «um chafariz para beberem bestas...», prova de que, na ressaca da peste negra, se entendia que os humanos deveriam servir-se de fontes cujas águas não fossem contaminadas por animais.

No século XVIII, D. João V dedicou uma atenção especial ao abastecimento de água às populações, mandando sanear nascentes e fontes, encanar a água e fazê-la sair, mais ou menos, límpida, de muitos chafarizes nos territórios que compunham o Portugal de então. Alguns deles são edificações barrocas elaboradas, rematadas pelo escudo régio, uma marca de poder que valia uma assinatura.

Para terminar, deixo-vos o desafio: numa próxima viagem, dentro ou fora do país, atentem nos chafarizes. Talvez vos espere uma bela surpresa. Um milagre? Só se for o do bom senso e do bom gosto com que os antigos cuidaram, em sentido largo, de dar de beber a quem tem sede.

Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no jornal da  S. C. M. do Cartaxo.

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