Escrevo no dia de Santo
António, o santo português nascido em Lisboa e que o mundo cristão conhece,
sobretudo, como «de Pádua», a cidade italiana onde viveu, pregou com elevada
erudição e faleceu, em cheiro de santidade, com, aproximadamente, trinta e seis
anos de idade.
Contemporâneo de São
Francisco, o testemunho espiritual que nos legou reflete a sua sabedoria e amor
ao próximo. A fé popular encarregou-se, porém, ao longo dos séculos, de
envolver a sua figura austera em lendas, de recorte variado, compondo cenários
nos quais ocorrem milagres «suaves» como o conto que Eça de Queiroz escreveu,
milagres singelos para a satisfação de preces inocentes ou, até, para resolver
acidentes de pouca monta, como é o caso das bilhas quebradas por causa de namoricos
à beira de um qualquer chafariz.
O quadro-tipo destes
milagres é, com ressalva de pormenores, o seguinte: uma moça de aldeia, ao
findar do dia, depois da faina no campo ou nas lides caseiras, pega no cântaro
de barro e vai enchê-lo à fonte ou a um poço. Depois de cheio, coloca-o à
cabeça no preciso momento em que, detrás de uma sebe, lhe aparece o namorado ou
o rapaz que a requesta. Assustada ou emocionada com o encontro, a rapariga
perde o equilíbrio e a bilha faz-se em pedaços, caída a seus pés. Sem
recipiente, como recolher a preciosa água? E é água, mas salgada e em torrente,
que, então, lhe cai pelas faces. Que lhe valha Santo António naquela aflição! O
santinho, condoído, acorre a restaurar, pedaço a pedaço, (ou terá sido com um
simples estender da mão, ou com um sorriso, ou com um olhar?) a infusa que,
retornando à fonte, se enche de novo, mais inteira do que quando o oleiro a deu
como pronta.
Há dezenas de lendas
que atribuem milagres deste género a Santo António, um santo muito querido dos portugueses,
e não só. Um pouco por toda a parte, no mundo católico, há imagens de Santo
António nos altares, havendo casos em que lhe são dedicadas capelas; emociona
encontrá-las em países tão distantes do nosso. Em Roma, a igreja de que é orago
é também conhecida como «igreja dos portugueses».
O tema «Santo António»
preencheria várias páginas, livros inteiros, até. Talvez em futuras «Palavras
Roladas» calhe voltarmos ao assunto. Hoje, o título do artigo é «Chafariz»;
assim o pensei, assim o mantenho. Mas, tal como as cerejas, que se vão comendo
sem darmos por isso, assim são as palavras: marcamos-lhes um rumo e desviam-se,
fogem à nossa regra, tornam-se, por assim dizer, donas do seu destino, rolando,
rolando...Precisamos de lhes dar uma voz de comando inequívoca se queremos
garantir o nosso propósito.
Ora, pois, chafariz é
uma palavra de origem árabe – quem diria? – uma das que nos ficou, bem firme,
na linguagem comum. Inicialmente, o termo correspondia, também, a cisterna,
poça de água, bebedouro, lavadouro público. Enquanto «poça de água» era, de
facto, uma fonte de mergulho, uma espécie de tanque em que se mergulhavam as
vasilhas para as encher. Os preceitos de higiene vieram proibir esse método de
abastecimento, perigoso para a saúde pública, quanto mais não fosse, porque os
animais bebiam também, diretamente, desses tanques. Um documento da Chancelaria
de D. João I, de finais do século XIV, manda que se faça «um chafariz para
beberem bestas...», prova de que, na ressaca da peste negra, se entendia que os
humanos deveriam servir-se de fontes cujas águas não fossem contaminadas por
animais.
No século XVIII, D.
João V dedicou uma atenção especial ao abastecimento de água às populações,
mandando sanear nascentes e fontes, encanar a água e fazê-la sair, mais ou
menos, límpida, de muitos chafarizes nos territórios que compunham o Portugal
de então. Alguns deles são edificações barrocas elaboradas, rematadas pelo
escudo régio, uma marca de poder que valia uma assinatura.
Maria Amélia de
Vasconcelos
Texto publicado no
jornal da S. C. M. do Cartaxo.
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