28 setembro 2015

BARCELONA

CORREIOS CENTRAIS-CÚPULA
Foto de: Maria Amélia de Vasconcelos

EM FORMAÇÃO

Eram cerca de vinte pessoas, a maioria do sexo feminino, que cumpriam uma jornada de formação. Não tendo eu visto qualquer identificação, atrevo-me a afirmar que a média de idades ultrapassava os quarenta anos. Encontrei-os divididos em pequenos grupos discutindo objetivos e estratégias, tomando notas e construindo documentos para apresentar ao formador. Este reconhecia-se ao primeiro olhar: fato completo, gravata, ar sério e passos medidos por entre as mesas, olhando de alto. Se dúvidas me assaltassem elas dissipar-se-iam quando o senhor avisou o grupo de que os trabalhos iriam recomeçar.

A revoada deixou os lugares à mesa e, pouco a pouco, foi entrando numa sala. Chegava ao fim o «break» que não fora, afinal, de descanso mas, apenas, um filão estreito e, talvez, mais claro entre a massa pesada e argilosa que havia para moldar: as competências, signifique o termo o que significar. Soltaram-se, então mais alto, algumas palavras, tais como, responsabilização, colaborador, empresa...

Deste quadro concluí que, enquanto eu descansava e contemplava lonjuras, o verão se tinha escapulido entre os meus dedos, mesmo que o calendário não o confirmasse. É que, ali ao meu lado, trabalhava-se, talvez sem entusiasmo, presumo eu. Setembro não tinha chegado a meio, ainda não se dourava a natureza e o desencanto daqueles formandos era já patente.

Gostaria de acreditar que estas pessoas se enquadravam numa qualquer empresa estável, que, no final do mês receberiam um salário digno para fazerem face às despesas, que, enfim, tinham um emprego e estavam a atualizar conhecimentos, de modo a melhorarem a sua prestação profissional.

As grandes e médias empresas proporcionam aos seus colaboradores esses momentos de aperfeiçoamento, com proveitos notórios nas competências individuais e na rentabilidade e eficácia do trabalho.

Este grupo, no entanto, não parecia ter a coesão de quem se conhece e se empenha na direção de uma finalidade comum. Ao vê-lo, assim, compósito, recuei vinte e tal anos e lembrei-me do tempo em que, quem não arranjava emprego e tinha algumas qualificações escolares, ajeitava a vida vendendo enciclopédias de porta em porta. Eram jovens e tratava-se de uma ocupação temporária, semelhante à dos que, hoje, nos propõem que nos fidelizemos a pacotes de telefone-televisão-internet.

As pessoas que observei não eram, propriamente, jovens. Cada uma delas já terá, por certo, experiência profissional numa qualquer área. Estavam em formação, mais uma formação, por certo, na tentativa de alcançar um posto de trabalho.

Se não olharmos, apenas, ao aspeto prático e objetivo deste «estar em formação», todos nós, seres humanos, estamos em formação enquanto o espírito estiver desperto, pois há, sempre, algo para aprender ou para cimentar mais profundamente. «Estar em formação» igual a estar desempregado é uma realidade dos nossos dias, triste realidade que é impossível ignorar, tantas são as famílias que vivem sob condição, a prazo, à espera que uma formação lhes abra as portas para um trabalho compensador.

Seria bom que amanhã fosse o dia em que o número do desemprego se reduzisse a um dígito percentual. Baixinho, acrescento ainda.

O trabalho é parte integrante do conceito de pessoa, confere direitos e deveres, firma a auto-estima. É ele que aglutina as sociedades e as faz prosperar.

Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no jornal da  S. C. M. do Cartaxo

VITÓRIA-ESPANHA

CHAPÉUS
Foto de: Maria Amélia de Vasconcelos

DOS SONS NASCEM AS IDEIAS

Jaíra foi a primeira a afastar a cadeira da mesa, perguntando se estava ocupada.

Estava livre. Sentou-se, então, com um suspiro de cansaço e alívio, como quem alija um carrego.  Na sua frente sentou-se a amiga, cumprimentando-nos com um sorriso e uma inclinação de cabeça.

O nosso almoço aproximava-se do fim, faltando só a sobremesa. Em menos de um «ai», as duas mesas tornaram-se numa só, uma «mesa redonda» de conversa, mais de meia hora, de conversa espontânea. As recém-chegadas tinham desembarcado em Portugal, vindas do Brasil, estado de São Paulo. De dois em dois anos, estas amigas saem do seu país natal e visitam o velho continente, conjuntamente com um grupo que, em geral, se compõe dos mesmos elementos, sempre a cargo da mesma agência de viagens. Desta vez o destino era a Hungria. Em Lisboa faziam escala e dispunham, apenas, de umas quantas horas, poucas, de modo que não iriam alargar muito o escasso conhecimento que tinham da cidade.

Sobre o nosso país tinham algumas informações, sobretudo do momento sócio-político e económico. Interessadas na sustentabilidade do Planeta, aflorámos esse tema, entre muitos outros. Por elas ficámos a saber que São Paulo tem problemas com a água potável já que os aquíferos, embora ricos, se encontram poluídos. A ganância, que grassa por todo o lado, permitiu que a grande metrópole se estendesse em construções que chegam às encostas de onde escorrem cursos de água. Em consequência, nas caves desses prédios abusivamente implantados onde não deveria existir construção, foram instaladas bombas que, dia e noite, escoam, rua abaixo, as águas que nelas se depositam, sem proveito para ninguém, o puro desperdício de um bem que deveria ser usufruído por todos. Quanto ao saneamento básico, as zonas rurais envolventes desconhecem o conceito. Os mais esclarecidos constroem, nos seus quintais, fossas ecológicas cujo material orgânico é, posteriormente, aproveitado no enriquecimento dos solos agrícolas. Espantou-as, a informação de que, em Portugal, mais de 90% do território habitado dispõe de infra-estruturas modernas e eficazes.

Saltitando de tema em tema, soubemos que eram, ambas, professoras aposentadas do sistema público. Curiosamente, não tendo laços familiares, estas duas senhoras descendem de holandeses. Uma delas, de feições marcadamente orientais, tem as suas raízes mais próximas no Japão. O nome de família é Okajima, apelido comum naquele país. Esta palavra sugere-me  um fruto, tem forma de fruto, não sei porque razão, colorido, sumarento e aromático. Rimos os quatro quando eu partilhei esta ideia, tirada de coisa nenhuma, assente apenas nos sons da palavra, tão ritmados e melódicos que lhes associei os sentidos e lhes dei um corpo.

Quem sabe? Existindo tantos frutos exóticos que desconheço, talvez ainda, um dia, possa saborear uma okajima. Bem madura, que não gosto de fruta verde.

Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no jornal da  S. C. M. do Cartaxo