CORREIOS CENTRAIS-CÚPULA Foto de: Maria Amélia de Vasconcelos |
Palavras Roladas é um espaço de simples reflexão acerca das palavras que usamos na linguagem de todos os dias e, porventura, de outras, menos gastas, quando convier. As imagens visuais hão-de infiltrar-se, seguras da sua eficácia. Palavras roladas, como os seixos que o vento e o movimento das águas afeiçoaram, como frutos. Então, os olhos encontram-nos e a mão recolhe-os e aquece-os um momento para, mais além, os devolver à praia onde outros olhos e outras mãos os hão-de descobrir e dar calor.
28 setembro 2015
EM FORMAÇÃO
Eram cerca de vinte pessoas, a maioria do sexo feminino, que
cumpriam uma jornada de formação. Não tendo eu visto qualquer identificação,
atrevo-me a afirmar que a média de idades ultrapassava os quarenta anos.
Encontrei-os divididos em pequenos grupos discutindo objetivos e estratégias,
tomando notas e construindo documentos para apresentar ao formador. Este
reconhecia-se ao primeiro olhar: fato completo, gravata, ar sério e passos
medidos por entre as mesas, olhando de alto. Se dúvidas me assaltassem elas
dissipar-se-iam quando o senhor avisou o grupo de que os trabalhos iriam
recomeçar.
A revoada deixou os lugares à mesa e, pouco a pouco, foi
entrando numa sala. Chegava ao fim o «break» que não fora, afinal, de descanso
mas, apenas, um filão estreito e, talvez, mais claro entre a massa pesada e
argilosa que havia para moldar: as competências, signifique o termo o que
significar. Soltaram-se, então mais alto, algumas palavras, tais como,
responsabilização, colaborador, empresa...
Deste quadro concluí que, enquanto eu descansava e
contemplava lonjuras, o verão se tinha escapulido entre os meus dedos, mesmo
que o calendário não o confirmasse. É que, ali ao meu lado, trabalhava-se,
talvez sem entusiasmo, presumo eu. Setembro não tinha chegado a meio, ainda não
se dourava a natureza e o desencanto daqueles formandos era já patente.
Gostaria de acreditar que estas pessoas se enquadravam numa
qualquer empresa estável, que, no final do mês receberiam um salário digno para
fazerem face às despesas, que, enfim, tinham um emprego e estavam a atualizar
conhecimentos, de modo a melhorarem a sua prestação profissional.
As grandes e médias empresas proporcionam aos seus
colaboradores esses momentos de aperfeiçoamento, com proveitos notórios nas
competências individuais e na rentabilidade e eficácia do trabalho.
Este grupo, no entanto, não parecia ter a coesão de quem se
conhece e se empenha na direção de uma finalidade comum. Ao vê-lo, assim,
compósito, recuei vinte e tal anos e lembrei-me do tempo em que, quem não
arranjava emprego e tinha algumas qualificações escolares, ajeitava a vida
vendendo enciclopédias de porta em porta. Eram jovens e tratava-se de uma
ocupação temporária, semelhante à dos que, hoje, nos propõem que nos
fidelizemos a pacotes de telefone-televisão-internet.
As pessoas que observei não eram, propriamente, jovens. Cada
uma delas já terá, por certo, experiência profissional numa qualquer área.
Estavam em formação, mais uma formação, por certo, na tentativa de alcançar um
posto de trabalho.
Se não olharmos, apenas, ao aspeto prático e objetivo deste
«estar em formação», todos nós, seres humanos, estamos em formação enquanto o
espírito estiver desperto, pois há, sempre, algo para aprender ou para cimentar
mais profundamente. «Estar em formação» igual a estar desempregado é uma
realidade dos nossos dias, triste realidade que é impossível ignorar, tantas
são as famílias que vivem sob condição, a prazo, à espera que uma formação lhes
abra as portas para um trabalho compensador.
Seria bom que amanhã fosse o dia em que o número do
desemprego se reduzisse a um dígito percentual. Baixinho, acrescento ainda.
O trabalho é parte
integrante do conceito de pessoa, confere direitos e deveres, firma a
auto-estima. É ele que aglutina as sociedades e as faz prosperar.
Maria Amélia de
Vasconcelos
Texto
publicado no jornal da S. C. M. do
Cartaxo
DOS SONS NASCEM AS IDEIAS
Jaíra foi a primeira a afastar a cadeira da mesa, perguntando
se estava ocupada.
Estava livre. Sentou-se, então, com um suspiro de cansaço e
alívio, como quem alija um carrego. Na
sua frente sentou-se a amiga, cumprimentando-nos com um sorriso e uma
inclinação de cabeça.
O nosso almoço aproximava-se do fim, faltando só a sobremesa.
Em menos de um «ai», as duas mesas tornaram-se numa só, uma «mesa redonda» de
conversa, mais de meia hora, de conversa espontânea. As recém-chegadas tinham
desembarcado em Portugal, vindas do Brasil, estado de São Paulo. De dois em
dois anos, estas amigas saem do seu país natal e visitam o velho continente,
conjuntamente com um grupo que, em geral, se compõe dos mesmos elementos, sempre
a cargo da mesma agência de viagens. Desta vez o destino era a Hungria. Em
Lisboa faziam escala e dispunham, apenas, de umas quantas horas, poucas, de
modo que não iriam alargar muito o escasso conhecimento que tinham da cidade.
Sobre o nosso país tinham algumas informações, sobretudo do
momento sócio-político e económico. Interessadas na sustentabilidade do
Planeta, aflorámos esse tema, entre muitos outros. Por elas ficámos a saber que
São Paulo tem problemas com a água potável já que os aquíferos, embora ricos,
se encontram poluídos. A ganância, que grassa por todo o lado, permitiu que a
grande metrópole se estendesse em construções que chegam às encostas de onde
escorrem cursos de água. Em consequência, nas caves desses prédios abusivamente
implantados onde não deveria existir construção, foram instaladas bombas que,
dia e noite, escoam, rua abaixo, as águas que nelas se depositam, sem proveito
para ninguém, o puro desperdício de um bem que deveria ser usufruído por todos.
Quanto ao saneamento básico, as zonas rurais envolventes desconhecem o
conceito. Os mais esclarecidos constroem, nos seus quintais, fossas ecológicas
cujo material orgânico é, posteriormente, aproveitado no enriquecimento dos
solos agrícolas. Espantou-as, a informação de que, em Portugal, mais de 90% do
território habitado dispõe de infra-estruturas modernas e eficazes.
Saltitando de tema em tema, soubemos que eram, ambas,
professoras aposentadas do sistema público. Curiosamente, não tendo laços
familiares, estas duas senhoras descendem de holandeses. Uma delas, de feições
marcadamente orientais, tem as suas raízes mais próximas no Japão. O nome de
família é Okajima, apelido comum naquele país. Esta palavra sugere-me um fruto, tem forma de fruto, não sei porque
razão, colorido, sumarento e aromático. Rimos os quatro quando eu partilhei
esta ideia, tirada de coisa nenhuma, assente apenas nos sons da palavra, tão
ritmados e melódicos que lhes associei os sentidos e lhes dei um corpo.
Quem sabe? Existindo tantos frutos exóticos que desconheço,
talvez ainda, um dia, possa saborear uma okajima. Bem madura, que não gosto de
fruta verde.
Maria Amélia de
Vasconcelos
Texto
publicado no jornal da S. C. M. do
Cartaxo
Subscrever:
Mensagens
(
Atom
)