Seteira-Castelo de Monsaraz-Portugal Fotografia de: Maria Amélia Vasconcelos |
Palavras Roladas é um espaço de simples reflexão acerca das palavras que usamos na linguagem de todos os dias e, porventura, de outras, menos gastas, quando convier. As imagens visuais hão-de infiltrar-se, seguras da sua eficácia. Palavras roladas, como os seixos que o vento e o movimento das águas afeiçoaram, como frutos. Então, os olhos encontram-nos e a mão recolhe-os e aquece-os um momento para, mais além, os devolver à praia onde outros olhos e outras mãos os hão-de descobrir e dar calor.
19 janeiro 2016
A REVOLTA DAS MAÇAROCAS
Com lenços de «cache-nez» e
chapéus de palha, como adereços, pandeiretas, tambores, ferrinhos e maracas,
como acompanhamento, cantámos «As Janeiras» nos primeiros dias do ano. Os votos
de Bom Ano ficaram, assim formulados e, agora, por este meio, os reitero: que
2016 seja «melhor ano», como nos diz a cantiga, com paz, saúde e prosperidade.
Os anos são bons ou são maus
dependendo do que a cada um acontece no desfiar dos dias. No fim, feito o
balanço, o ano terá tido sinal de mais ou de menos, no plano individual. Quanto
ao plano global que é o mundo alargado onde todos nos movemos, 2015 viu muitas
desgraças, as naturais e aquelas que os humanos engendram: guerras, atentados,
opressão, ameaças, barbárie, déficit de respeito, um pouco por todo o lado.
Ainda que, individualmente, o ano tenha sido positivo, ficou-nos o amargo das
notícias que nos foram chegando e nos molestaram os sentimentos.
De outras notícias, porém,
escolhi, hoje, falar. Boas? Más? Antigas, isso sim. O leitor julgará como
entender, sabendo que a história que vou contar é da História e, portanto, não
pode ser retocada ao sabor da imaginação. Aconteceu como segue:
Em 1628 reinava em Portugal
Filipe III, Filipe IV de Espanha, que reunia, em si, as duas coroas ibéricas. A
vida corria bem apenas a um restrito grupo de pessoas, as que detinham cargos
importantes no governo ou no exército. Portugal estava sobrecarregado de
impostos, necessários para que a Espanha pudesse manter, ao mesmo tempo e com
elevados custos, várias frentes de guerra. Para fazer face aos gastos, o
governo era imaginativo a criar taxas e impostos, na mira de ir buscar dinheiro
mesmo onde ele não existia. Foi, então, que lançou um imposto sobre as
maçarocas, não as espigas de milho, mas as têxteis. Explicando melhor: dá-se o
nome de maçaroca ao fio de lã ou de linho que se forma no fuso antes de se
enrolar o novelo. Quem realizava esse trabalho eram as mulheres mais pobres, as
quais, findas as fainas domésticas e agrícolas, tiravam tempo ao seu descanso
para conseguirem, desta forma, mais umas moeditas.
De Madrid veio, então, ao Porto, o conselheiro de estado
Francisco de Lucena com indicação de que o Senado da Câmara tinha de lançar o
referido imposto. O Senado acatou a ordem e começava a debater qual a melhor
forma de o cobrar quando, na ribeira, se soube da presença do conselheiro e dos
motivos da sua viagem. Em pouco tempo juntou-se uma multidão de mulheres
exaltadas, tendo aderido, também, os homens do mar, pescadores e marinheiros,
além de outro povo miúdo que ia tendo conhecimento das razões do alvoroço.
Houve gritaria, choveram as injúrias contra o governo e o Senado, e choveram,
igualmente, pedradas contra o conselheiro que foi encontrado no terreiro do
convento de São Domingos, local onde se refugiou depois. Voltaram-se os
arremessos contra o edifício atá que um frade, mais ousado, se dirigiu à
multidão dizendo que Lucena saltara a cerca que dividia aquele convento do de
São Francisco, daí apanhara o barco e já estava em Gaia, do outro lado do rio.
Com esta artimanha a multidão dispersou mas o conselheiro não ganhou para o
susto.
Voltando a Madrid, Lucena relatou
os acontecimentos cujas consequências seriam graves para os portuenses, não
fossem as diligências do bispo do Porto que obteve do rei o perdão para os
amotinados. Terminou, assim, a «Revolta das Maçarocas» sem punições, exceto o
imposto que não terá deixado de ser cobrado, por pequeno que tenha sido o
montante que dele adveio.
1628 foi ano bom? Foi ano mau?
Para as gentes do Porto ficou na memória por ter sido muito complicado, a
julgar pela que acima se conta. E 2016, como será? Porque é ainda muito menino,
concentremos nele toda a esperança, aquela esperança que pomos nas coisas novas
que empreendemos.
Viva o Novo Ano!
Maria Amélia de
Vasconcelos Timóteo
Janeiro de 2016
Texto
publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.
Janeiro de 2016
UM FRUTO - VÁRIOS SÍMBOLOS
Quando pensamos no outono,
ocorre-nos, em primeiro lugar, a beleza das cores com que a natureza nos
brinda. Muito do verde que, tenro e novo, rebentou na primavera e nos ajudou a
refrescar o verão, mostra-se, no outono, numa paleta de cores quentes: amarelo,
laranja, vermelho, rosado, castanho, conforme as espécies. Um regalo para o
olhar! Associamos esta beleza à folhagem e quase nos esquecemos dos frutos da
época, cada um mais saboroso do que o outro, sendo que, os de casca rija, podem
deliciar-nos por muito tempo. Um dos que acho mais bonitos é a romã, de casca
rija e interior líquido, dentinhos de sol que se mostram, brilhando, quando,
não podendo já conter-se no interior, espreitam por frestas, num sorriso, nos
ramos pesados.
Alguns pintores de temas religiosos
incluíram romãs nos quadros que representam o nascimento de Maria e o
nascimento de Jesus. Fruto múltiplo, como a pinha, por exemplo, a forma
esférica da romã simboliza a orbe terrestre e celeste e, também, o útero; os
seus bagos, juntos, são a imagem da coesão que gera a força; a sua cor retrata
as vestes de reis e sacerdotes e, igualmente, o sangue vivificador. A escultura
também utiliza a romã em baixos-relevos e para coroar colunas, pilares e
balaústres.
Na tradição cristã, comem-se
romãs no Dia de Reis, realce da «coroa»
do fruto no dia em que se evoca gente coroada. Seriam sábios vindos de longe
esses adoradores do Deus-Menino; reis talvez não fossem. No entanto, a tradição
assim os refere e, como tal, os aceitamos. Também é uso comer-se romã no Ano
Novo, tal como na tradição judaica, e há quem o faça com uma moeda na mão, no
intuito de que ela se multiplique por muitas outras.
Para os judeus, a romã é símbolo
de fertilidade e de abundância. Durante a travessia do deserto, o povo de Deus,
vindo do Egito, conduzido por Moisés, ansiava chegar à «terra prometida», rica
de trigo, cevada, vinhas, figueiras e romãzeiras... Assim é referido no Antigo
Testamento.
A romãzeira é uma planta comum
nos países mediterrânicos, mas é originária da Ásia, mais exatamente da Pérsia
e países vizinhos. Os gregos associavam o fruto à fecundidade, à ordem e ao
amor. Urdidores de tantos mitos, deve-se aos gregos o registo do primeiro
concurso de beleza. Páris, um jovem príncipe criado por pastores, foi
encarregado, pelo deus Hermes, de escolher a mais bela de entre três deusas,
sendo que o prémio seria um «pomo de ouro», talvez uma maçã mas, mais
provavelmente, uma romã, o fruto do Sol, o seu ouro.Páris escolheu a deusa do
Amor, depois de peripécias que não vêm ao caso. Posso, contudo, acrescentar que
essa escolha teve más consequências pois levou à longa guerra de Tróia, também
ela mítica.
Tenho no quintal uma romãzeira
anã que dá uns frutinhos do tamanho de amoras; no resto, iguais aos frutos
comestíveis. No final da última primavera, cobriu-se de flores que foram caindo
sem que, talvez devido à secura do verão, se visse qualquer fruto vingado. Há
alguns dias, porém, ao cortar umas pontas secas do arbustinho, encontrei um
pequeníssimo fruto que me pareceu diferente dos habituais. E assim é: o pezinho
não se encontra na posição oposta à «coroa», como se fosse o prolongamento de
um eixo, mas sai da parte rotunda do fruto. Nunca vi nada igual. É, pois, um
presente único do outono, sempre generoso. E «calhou-me», a mim, este prodígio!
Como não sentir-me grata?
Maria Amélia de
Vasconcelos
Novembro de 2015
Texto
publicado no jornal da S. C. M. do
Cartaxo.
Novembro de 2015
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