16 outubro 2010

POENTE

Pôr-do-Sol 
Há um barco de luz
ancorado no poente
as velas altas flamas
consumidas e libertas
arco-íris cálido ventre.

A forma da asa incerta
contornada de carmim
pena a pena desenhada
na claridade fundente
cetim de colcha bordada
enlace de céu e mar.

Amar aquele momento
pelo que é e há-de ser
o findar e o recomeço
o dia mais ausente
a noite nacarada concha
onde se espera adormecer.

É o instante sem igual
de romper as veias sem temor
caldeando o sangue e o sal
o suor e o pensamento
amassar a flor do alimento
e sorver de um hausto só
o espírito de um licor.

Maria Amélia de Vasconcelos

10 outubro 2010

O PONTO

Uma das palavras mais roladas da nossa língua, o ponto, pode conter uma imensidade de significados.
Em termos geométricos, «ponto» é uma figura sem dimensões, uma abstracção, um quase nada. Serão necessários muitos pontos, encostadinhos, para se iniciar uma linha. E seriam necessárias muitas linhas, de escrita, bem entendido, para destacarmos, um a um, todos os valores que atribuímos à palavra ponto.

Falaremos, pois, tão somente, de alguns, em jeito de pincelada solta, de modo a que os leitores recordem outros usos desta palavra, enriquecendo, assim, o rol de significados.
Como para tudo há sempre um ponto de partida, podemos começar pelo ponto de exame, o teste, como agora é mais corrente dizer-se. Esse ponto é um questionário a que os alunos têm de responder, com maior ou menor grau de correcção. Depois de avaliado o teste, o resultado será expresso em pontos.

Se o tema for a doçaria – compotas, geleias, doces de espécie – os mestres precisam de obter, para cada especialidade, o ponto adequado do açúcar para que a receita saia bem. Estando o ponto no seu máximo, designa-se ponto de rebuçado, uma expressão que utilizamos mesmo quando não é de coisas doces que estamos a tratar.

Na costura e nos bordados, então, é um nunca mais acabar de pontos. O cheio, de sombra, atrás, de luva, de cruz, de cadeia…Um dos mais comuns é o ponto-pé-de-flor, título, também, de um romance. Sendo muito simples, ensinava-se, na infância, às meninas e, apesar do nome, servia para preencher muitos outros desenhos, que não só as hastezinhas das flores.

Considerando a palavra escrita, entendemo-nos todos melhor se usarmos pontuação. As ideias tornam-se mais claras com a ajuda de pontos. E, quando o texto se destina a «bom entendedor», juntamos três pontinhos a uma frase, chamamos-lhes reticências, e a conversa fica concluída.

Na linguagem oral, em discussões mais ou menos acaloradas, já ouvimos, decerto, alguém proclamar que o seu ponto de honra é tal…e tal…

Nos locais de trabalho, os funcionários marcam o ponto, entrada e saída, no relógio de ponto para que não seja posta em causa a sua «pontualidade».

Não nos podemos esquecer – seria falta imperdoável – do ponto do teatro. Até há uns anos, o teatro declamado, por causa da fidelidade ao texto, e sendo verdade que os actores também podem ter perdas de memória em cena , socorria-se de um trabalhador imprescindível. Com a peça à sua frente, metido num espaço minúsculo, à boca de cena ( a caixa do ponto), o ponto ia lendo, com um ligeiro avanço, as falas que competiam a cada personagem. Hoje, mercê das tecnologias áudio, tal profissão já não existe.

Em compensação falamos, agora de um ponto novo, o ecoponto, local onde devemos depositar os resíduos que produzimos para que possam ser reciclados.

Enfim, estando a ponto de terminar estas congeminações, resta-me reiterar que o nosso ponto de encontro se manterá, aqui, nas Palavras Roladas, mas, sem data marcada. Ora aí é que bate o ponto: o local é certo, o calendário variável. Ponto final.

Maria Amélia de Vasconcelos

Excerto do texto publicado no jornal interno da S.C.da M.do Cartaxo.

05 outubro 2010

EMBONDEIRO

Eram ratos suspensos                                    
os frutos do embondeiro
túrgidos da seiva
do desmedido celeiro
que os sustinha.

A garça vinha saciada
mirava ainda o pesqueiro
a asa leve afagando
a camurça dos frutos.

Quando o derradeiro
fulgor do sol
revestia de prata
o corpo do embondeiro
era chegada
a hora da transmutação.

Então fruto e garça a par
são vela a arder
e flor a desabrochar
liturgia e oração
entre a gase do dia
e a dobra da noite
derramada pelo chão.

Maria Amélia de Vasconcelos

02 outubro 2010

FOGO


S/T - Técnica mista sobre tela
O fogo é um dos mais valiosos conhecimentos da humanidade, indispensável para o seu progresso, não só o progresso material que fez o mundo mudar e tornar-se uma morada cómoda, mas, também, o progresso do espírito pois, ao redor do fogo, se reuniram os homens que, com cânticos, danças e palavras portadoras de memórias, moldaram as civilizações. O convívio no seio dos clãs, das tribos, das famílias, ao calor das fogueiras, ajudou a firmar os costumes comuns, ensinou a respeitar as tradições e a exaltar os heróis, contribuiu para exorcizar alguns medos. À volta da fogueira, desde tempos remotos até aos nossos dias, trocam-se saberes, fortalecem-se laços, brinda-se à alegria e medita-se sobre o papel do homem na terra e sobre o seu destino último.

Na civilização da Grécia antiga, o fogo, juntamente com o ar, a água e a terra, era um elemento vital, envolto em mitos, tal como os outros três elementos. A força que detinham estava na origem de toda a criação, da alma, inclusive.

No respeitante ao fogo, em breves traços, a mitologia refere que Zeus, o mais poderoso de todos os deuses, irritado com o mau comportamento dos homens, lho retirou. Por causa desta perda, de tamanha importância, houve um retrocesso civilizacional, só recuperado quando um herói, Prometeu, subiu ao Olimpo, a morada dos deuses, roubou o fogo e entregou um facho incandescente a Hefesto, o deus ferreiro, que, assim, pôde continuar a forjar as armas dos heróis invencíveis e a moldar os artefactos que serviam à agricultura, o sustento dos homens. Hefesto era mestre na sua arte, a qual, aperfeiçoando-se e expandindo-se, se tornou em técnica, na paz e na guerra.

Vivemos num mundo de objectos, cada dia mais sofisticados. Se neles atentarmos encontraremos em todos – e o mesmo se aplica aos químicos – o fogo como interveniente, próximo ou remoto.

O fogo, enquanto elemento vital, é benfazejo. Que dizer, então, quando, tomado dos mais violentos excessos, atinge uma dimensão selvática, assassina? Como encará-lo quando destrói vidas e património, quando reveste de desolação o que os olhos vêem e o coração sente? Temos, então, de lhe chamar «incêndio», palavra que atemoriza.

Todos os anos o nosso país é, largamente, incendiado, dias a fio consumido por chamas que geram imagens de aflição e de impotência perante um flagelo que é recorrente e, mais ou menos, sazonal. Todos os anos ficamos mais pobres e nos perguntamos quem ateia estes fogos. Os pobres de espírito, os socialmente marginalizados? É a estes que se aponta o dedo, os elos fracos. O clima que temos, a orografia que dificulta o socorro também fazem parte da lista dos culpados, como se estas realidades fossem alteráveis. Eu não creio que os incêndios sejam uma praga sem remédio a que estamos sujeitos. Sabemos que não pode estar um polícia atrás de cada potencial incendiário. As respostas dos responsáveis pela coisa pública, através da legislação que organiza o território, que regula a utilização dos solos, que zela pela  boa saúde das matas e florestas, existem. Mas serão cumpridas as leis? Os meios de que dispõe a protecção civil e os bombeiros revelam-se insuficientes. Ou serão mal utilizados? Ou não cobrem, por igual, todo o território? À volta do fenómeno dos incêndios em Portugal há muitas perguntas no ar. Parece-me, contudo, que há uma educação cívica, abrangente, a fazer, que vai para além dos cartazes, dos slogans, das palestras televisivas, dos discursos bem intencionados, ou antes, que use todos estes meios, massivamente, começando na escola, nos estádios de futebol, nas associações de qualquer índole, o ano inteiro, porque as perdas que o país sofre têm reflexos durante décadas. É preciso que os portugueses conheçam o fogo, não só na pirotecnia das festas e romarias, mas no seu reverso temível, para que saibam proteger-se dos seus efeitos nefastos.

Maria Amélia de Vasconcelos

Texto publicado no jornal interno da S.C.da M.do Cartaxo.