02 outubro 2010

FOGO


S/T - Técnica mista sobre tela
O fogo é um dos mais valiosos conhecimentos da humanidade, indispensável para o seu progresso, não só o progresso material que fez o mundo mudar e tornar-se uma morada cómoda, mas, também, o progresso do espírito pois, ao redor do fogo, se reuniram os homens que, com cânticos, danças e palavras portadoras de memórias, moldaram as civilizações. O convívio no seio dos clãs, das tribos, das famílias, ao calor das fogueiras, ajudou a firmar os costumes comuns, ensinou a respeitar as tradições e a exaltar os heróis, contribuiu para exorcizar alguns medos. À volta da fogueira, desde tempos remotos até aos nossos dias, trocam-se saberes, fortalecem-se laços, brinda-se à alegria e medita-se sobre o papel do homem na terra e sobre o seu destino último.

Na civilização da Grécia antiga, o fogo, juntamente com o ar, a água e a terra, era um elemento vital, envolto em mitos, tal como os outros três elementos. A força que detinham estava na origem de toda a criação, da alma, inclusive.

No respeitante ao fogo, em breves traços, a mitologia refere que Zeus, o mais poderoso de todos os deuses, irritado com o mau comportamento dos homens, lho retirou. Por causa desta perda, de tamanha importância, houve um retrocesso civilizacional, só recuperado quando um herói, Prometeu, subiu ao Olimpo, a morada dos deuses, roubou o fogo e entregou um facho incandescente a Hefesto, o deus ferreiro, que, assim, pôde continuar a forjar as armas dos heróis invencíveis e a moldar os artefactos que serviam à agricultura, o sustento dos homens. Hefesto era mestre na sua arte, a qual, aperfeiçoando-se e expandindo-se, se tornou em técnica, na paz e na guerra.

Vivemos num mundo de objectos, cada dia mais sofisticados. Se neles atentarmos encontraremos em todos – e o mesmo se aplica aos químicos – o fogo como interveniente, próximo ou remoto.

O fogo, enquanto elemento vital, é benfazejo. Que dizer, então, quando, tomado dos mais violentos excessos, atinge uma dimensão selvática, assassina? Como encará-lo quando destrói vidas e património, quando reveste de desolação o que os olhos vêem e o coração sente? Temos, então, de lhe chamar «incêndio», palavra que atemoriza.

Todos os anos o nosso país é, largamente, incendiado, dias a fio consumido por chamas que geram imagens de aflição e de impotência perante um flagelo que é recorrente e, mais ou menos, sazonal. Todos os anos ficamos mais pobres e nos perguntamos quem ateia estes fogos. Os pobres de espírito, os socialmente marginalizados? É a estes que se aponta o dedo, os elos fracos. O clima que temos, a orografia que dificulta o socorro também fazem parte da lista dos culpados, como se estas realidades fossem alteráveis. Eu não creio que os incêndios sejam uma praga sem remédio a que estamos sujeitos. Sabemos que não pode estar um polícia atrás de cada potencial incendiário. As respostas dos responsáveis pela coisa pública, através da legislação que organiza o território, que regula a utilização dos solos, que zela pela  boa saúde das matas e florestas, existem. Mas serão cumpridas as leis? Os meios de que dispõe a protecção civil e os bombeiros revelam-se insuficientes. Ou serão mal utilizados? Ou não cobrem, por igual, todo o território? À volta do fenómeno dos incêndios em Portugal há muitas perguntas no ar. Parece-me, contudo, que há uma educação cívica, abrangente, a fazer, que vai para além dos cartazes, dos slogans, das palestras televisivas, dos discursos bem intencionados, ou antes, que use todos estes meios, massivamente, começando na escola, nos estádios de futebol, nas associações de qualquer índole, o ano inteiro, porque as perdas que o país sofre têm reflexos durante décadas. É preciso que os portugueses conheçam o fogo, não só na pirotecnia das festas e romarias, mas no seu reverso temível, para que saibam proteger-se dos seus efeitos nefastos.

Maria Amélia de Vasconcelos

Texto publicado no jornal interno da S.C.da M.do Cartaxo.

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