O rio era uma bênção, um pai extremoso que derramava as suas águas até à orla da floresta no tempo das chuvas.
Quando a grande pedra cravada no leito lançava golfadas de água e lama vermelha, numa espessa massa ruidosa e bravia, recolhiam-se as pirogas, puxadas a braços até ao alpendre da cubata maior. Aí ficavam nos meses das chuvas, aí eram limpos os seus cascos e eram remendadas com madeira nova, atada com lianas. Assim descansavam até que se avistasse o dorso cinzento do Peixe-Soba.
Os rapazes mais ágeis da aldeia subiam às árvores próximas da margem, nas noites de lua cheia, à escuta do rumor da cascata e à espera de que, por entre a névoa prateada, surgisse a grande rocha que o rio esculpira em forma de peixe, cuja cabeça apontava para a sanzala. O primeiro que avistava a cauda hirta, na outra margem, corria até à cubata grande, a dar o aviso. Como prémio, era-lhe permitido acompanhar o soba-grande e o soba-pequeno nas cerimónias do dia seguinte.
Só os muito velhos e os muito pequenos ficavam na aldeia, por não terem forças para empreender a caminhada que se iniciava com os primeiros raios de sol.
À frente, com os toucados de pele e os bastões de comando levantados, apertando o punho gravado com desenhos de aves de asas estendidas, caminhavam os dois sobas. Logo atrás, levando nos braços um peixe talhado em madeira, seguia o jovem que trouxera a notícia de que o rio recolhera ao seu leito. Depois, em linha, seguiam os caçadores com os seus arcos e as aljavas das flechas, batendo os pés e entoando um cântico guerreiro com que ritmavam o passo do cortejo. Os pescadores, de redes ao redor da cintura, fechavam o primeiro grupo.
Uns passos atrás, as mulheres, com os panos garridos e, à cabeça, os balaios com os frutos que a terra concedera na última colheita, formavam a cauda da procissão.
Junto à margem, o soba-grande entoava uma arrastada ladainha, convocando os espíritos dos antepassados para se associarem aos louvores devidos ao Peixe-Soba, cuja imagem de madeira o soba-pequeno mantinha submersa. Ao mesmo tempo, os caçadores mergulhavam os arcos e os pescadores as redes, enquanto as mulheres lançavam punhados de sementes que o cachão turvo do rio fazia rodopiar e logo desaparecer.
Dava-se, assim, início a um novo ciclo de vida comunitária. As mulheres recomeçavam a depositar os grãos na nata que o rio deixava, após as chuvas. Os homens podiam, agora, internar-se na floresta e, seguindo as pisadas dos animais, encontrar peças de caça. As pirogas deslizavam outra vez no rio plácido e voltavam à tardinha, pesadas da pescaria.
Na aldeia, a mãe-grande era a mestra que preparava as adolescentes para os ritos de passagem à idade adulta, revelando segredos, ensinando sobre ervas e raízes, repetindo o que gerações de mulheres, antes dela, já tinham escutado.
O soba-pequeno instruía os rapazes nas lutas, no uso dos arcos e das redes, incitava-os a proezas arriscadas para que ficassem aptos a vencerem as provas que teriam de prestar para se tornarem homens.
Os anciãos, depositários de saberes ancestrais, reuniam-se à volta do soba-grande para, em conselho, administrarem a aldeia e para, usando as palavras e os gestos mágicos, impedirem o Peixe-Soba, ao mesmo tempo amado e temido, de mostrar todo o seu corpo.
Se, por desgraça, esse dia chegasse, o rio deixaria de correr e a aldeia desapareceria, engolida pela voracidade do Peixe-Soba.
Texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.
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