21 dezembro 2014

TEMPO

Não há quem não fale dele, do tempo, entenda-se. Ou, melhor: não há quem não se refira aos diversos tempos, os meteorológicos e os outros, mais difusos e mais difíceis de explicar por palavras, os instantes que, somados e quantificados, formam unidades a que chamamos minutos, horas, dias…Há, também, o tempo em sentido mais lato, quando queremos significar uma época, um decurso alargado, quer seja do passado ou do futuro. É ou não certo que todos nós nos interrogamos sobre o que nos reservarão os tempos que hão-de vir?

Falar do tempo – o meteorológico – é comum. Serve de «motor de arranque» para uma conversa social, sem intimidade, e também dá jeito para preencher os hiatos quando já há pouco a dizer. Então, o que se pretenderia um diálogo pode reduzir-se a um monólogo surdo; e roda o disco: «é porque o verão foi frescote em demasia, o mês de Outubro quente como não há memória, mais a chuva, o vento, a geada…Ah, pois! E a agricultura é que sofreu…». Queixamo-nos do tempo, a causa do mau ano agrícola, mesmo quando aquilo a que chamamos «a nossa agricultura» se resuma a um vasinho de salsa débil na marquise.

O tempo do relógio e o do calendário – construções humanas – faz o seu caminho há milénios, a partir da observação dos astros. É uma aquisição coletiva de vários povos, de aperfeiçoamento em aperfeiçoamento, até à atualidade; e, a crer nas notícias que nos chegam pelos meios de comunicação, os estudos prosseguem, pelo que, mais década, menos década, podem ser necessários ajustes e o mundo pode passar a girar num outro compasso, no que toca a horários e calendários.

O outro tempo, o tempo histórico, deixou as suas marcas, umas mais evidentes, outras mais nebulosas. É possível descortinar o modo de vida de comunidades que existiram muito antes de nós, como sabemos. Esse trabalho de fazer falar o passado continua a ser o objetivo das ciências sociais que vão acrescentando documentos e fundadas opiniões para que melhor possamos compreender quem somos e de onde viemos.

Mas há, ainda, outro tempo, um tempo único, individual, pertença de cada pessoa, e ao qual chamarei tempo-memória. Este tempo não é balizável, não é mensurável, nem, sequer, é comprovável. Trata-se de um tempo difuso, sem contornos marcados, exceto para nós, que permite as fantasias, os mitos, as falsas recordações, a sensação de se saber, a fundo, aquilo que, factualmente, se desconhece. A infância e a juventude olham os acontecimentos  e os objetos de forma diversa da dos adultos. Parece-lhes grande e importante o que, eventualmente, é mediano. Apropriam-se dessas imagens e, com elas, tecem «um tempo», só deles, e um sentir de pertença absoluta. E, até à idade maior, enquanto o entendimento o consentir, tal ou tal acontecimento, será recordado com as dimensões, as cores, as formas, os cheiros, os sabores «daquele certo dia» em que, encontrando-se num local, desenhou no seu espírito uma imagem.

Se cada um fizer o simples exercício de regressar à sua infância, o mais que aí irá encontrar são imagens desse tempo-memória, nítidas como a asa de uma borboleta na lamela de um microscópio. E não adianta que nos digam, os que tenham estado presentes, mesmo ao nosso lado, que nos enganámos na estação do ano, nas cores do quadro, no discurso das personagens. O que gravámos em nós foi mais do que um acontecimento, num certo lugar, num certo dia. O que gravámos foi matéria para a formação do nosso espírito, foi substância para o crescimento.

Por esta razão, há um tempo individual, o tempo-memória que, não só é único, como não consente verdadeira partilha.

Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no jornal da S. C. da M. do Cartaxo

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