Não há quem não fale
dele, do tempo, entenda-se. Ou, melhor: não há quem não se refira aos diversos
tempos, os meteorológicos e os outros, mais difusos e mais difíceis de explicar
por palavras, os instantes que, somados e quantificados, formam unidades a que
chamamos minutos, horas, dias…Há, também, o tempo em sentido mais lato, quando
queremos significar uma época, um decurso alargado, quer seja do passado ou do
futuro. É ou não certo que todos nós nos interrogamos sobre o que nos
reservarão os tempos que hão-de vir?
Falar do tempo – o
meteorológico – é comum. Serve de «motor de arranque» para uma conversa social,
sem intimidade, e também dá jeito para preencher os hiatos quando já há pouco a
dizer. Então, o que se pretenderia um diálogo pode reduzir-se a um monólogo
surdo; e roda o disco: «é porque o verão foi frescote em demasia, o mês de
Outubro quente como não há memória, mais a chuva, o vento, a geada…Ah, pois! E
a agricultura é que sofreu…». Queixamo-nos do tempo, a causa do mau ano
agrícola, mesmo quando aquilo a que chamamos «a nossa agricultura» se resuma a
um vasinho de salsa débil na marquise.
O tempo do relógio e o
do calendário – construções humanas – faz o seu caminho há milénios, a partir
da observação dos astros. É uma aquisição coletiva de vários povos, de
aperfeiçoamento em aperfeiçoamento, até à atualidade; e, a crer nas notícias
que nos chegam pelos meios de comunicação, os estudos prosseguem, pelo que,
mais década, menos década, podem ser necessários ajustes e o mundo pode passar
a girar num outro compasso, no que toca a horários e calendários.
O outro tempo, o tempo
histórico, deixou as suas marcas, umas mais evidentes, outras mais nebulosas. É
possível descortinar o modo de vida de comunidades que existiram muito antes de
nós, como sabemos. Esse trabalho de fazer falar o passado continua a ser o
objetivo das ciências sociais que vão acrescentando documentos e fundadas
opiniões para que melhor possamos compreender quem somos e de onde viemos.
Mas há, ainda, outro
tempo, um tempo único, individual, pertença de cada pessoa, e ao qual chamarei
tempo-memória. Este tempo não é balizável, não é mensurável, nem, sequer, é
comprovável. Trata-se de um tempo difuso, sem contornos marcados, exceto para
nós, que permite as fantasias, os mitos, as falsas recordações, a sensação de
se saber, a fundo, aquilo que, factualmente, se desconhece. A infância e a
juventude olham os acontecimentos e os
objetos de forma diversa da dos adultos. Parece-lhes grande e importante o que,
eventualmente, é mediano. Apropriam-se dessas imagens e, com elas, tecem «um
tempo», só deles, e um sentir de pertença absoluta. E, até à idade maior,
enquanto o entendimento o consentir, tal ou tal acontecimento, será recordado
com as dimensões, as cores, as formas, os cheiros, os sabores «daquele certo
dia» em que, encontrando-se num local, desenhou no seu espírito uma imagem.
Se cada um fizer o
simples exercício de regressar à sua infância, o mais que aí irá encontrar são
imagens desse tempo-memória, nítidas como a asa de uma borboleta na lamela de
um microscópio. E não adianta que nos digam, os que tenham estado presentes,
mesmo ao nosso lado, que nos enganámos na estação do ano, nas cores do quadro,
no discurso das personagens. O que gravámos em nós foi mais do que um
acontecimento, num certo lugar, num certo dia. O que gravámos foi matéria para
a formação do nosso espírito, foi substância para o crescimento.
Por esta razão, há um
tempo individual, o tempo-memória que, não só é único, como não consente
verdadeira partilha.
Maria Amélia de
Vasconcelos
Texto publicado no jornal da
S. C. da M. do Cartaxo
Sem comentários :
Enviar um comentário