28 março 2015

AZULEJOS

Barro roubado à terra
seu mais-que-profundo lar
de onde o arrancou
aquela mão ancestral
que primeiro o moldou.

Em exercício de geometria
rigor de linhas
absoluta regularidade
vibra um canto de alegria
nos volumes da cidade.

As faces e as arestas
e a exata cor
que o pintor escolheu
acrescentada pela cor
que o fogo depois lhes deu.

Azulejos reservas de luz
contidos lado a lado
entre nexos e reflexos
parábola material
de um ideal
da humanidade.

Maria Amélia de Vasconcelos
4-02-2015

TRIÂNGULO VITAL

Meados de março, um tempo atmosférico risonho, com anúncios de primavera a pedirem roupas mais leves de dia, porque, de noite, o friozinho continua, na medida certa, como manda o calendário.

Este terceiro mês do ano concentra muitos «dias de». Já se comemorou o Dia da Mulher que, infelizmente, ainda faz  sentido destacar, tamanha é a desigualdade de género que se verifica no tratamento  menorizante, quando não desumano, de que a mulher é vítima, todos os dias, em vários pontos do globo, num qualquer ponto perto de nós.

O Dia do Pai, 19 – dia de São José – homenageia os homens que geraram amor e gratidão naqueles que criaram e educaram, sejam, ou não, pais biológicos.  Quando  o não são, e dão exemplos de vida e de amor, mais merecedores, ainda, de serem lembrados com carinho.

No próximo dia 21 começa oficialmente a primavera ( se ela quiser, bem entendido). Para o mesmo dia estão  marcadas  duas comemorações:  o Dia Mundial da Floresta e o Dia Mundial da Poesia.  Temas  tão  díspares, na mesma data? Pode parecer que sim, à primeira vista. No entanto, os conceitos  andam ligados através da origem semântica da palavra «poesia»  que significa «a criação, o fabrico, a invenção». Mas, então, a floresta pode ser criada, fabricada, inventada? A resposta é sim. O  homem  que  desmatou  vastas áreas sem saber que punha em risco a biodiversidade e o equilíbrio natural, ou, já sabendo do alcance negativo dessas ações, tem persistido em as manter, a troco de vantagens económicas imediatas e egoístas, é chamado, em nome do bem comum, à reinvenção da floresta, com as espécies autóctones, plantadas e cuidadas de acordo com as diretivas internacionais elaboradas cientificamente. Há acordos firmados entre países nesse sentido, alguns cumpridos ou em vias de cumprimento, outros ignorados, porque não são lucrativos a curto prazo. A percentagem das áreas desmatadas tem vindo a cair, mas de forma tímida, ainda. É um primeiro passo do esforço empreendido pela ONU que criou esta comemoração em 1971, adotada, desde 1972 em muitos países. Até ao final do século XX multiplicaram-se as campanhas esclarecedoras que começam agora a produzir alguns resultados.

No dia 22, o dia seguinte, comemora-se o Dia Mundial da Água, também uma iniciativa da ONU, de 1992, visando incutir nos habitantes do planeta em geral, e nos decisores políticos, em particular, a ideia de que a água potável – aquela que o ser humano pode usar na sua alimentação – é um bem muito escasso e que tem de ser bem gerido e acautelado. Há populações que morrem à fome por não terem água: Em consequência, emigram massivamente em busca do que lhes falta. Deslocam-se nas mais degradantes condições, invadindo outras regiões onde, quase sempre, são  mal  acolhidas. As campanhas assentam na ideia humanitária de que o direito à água é o direito à vida. De toda a água existente na Terra, apenas 0,008% é potável. Esta diminuta percentagem mostra bem o cuidado que tem de ser posto neste bem, que é preciso que chegue a todos e que não pode ser detido apenas por alguns.

Nos dias 21 e 22 estamos a comemorar um triângulo de interesses vitais e de benfazejas intenções que tocam a todos. Resumindo: preservar e melhorar a floresta, o berço de muitas espécies vegetais e animais e da qualidade do ar; cuidar dos ribeiros, rios, lagos e águas subterrâneas, o sangue e a linfa da vida; amar a poesia, alimento da alma, a força para encetarmos o caminho que conduz ao sentido mais profundo da própria vida.

Maria Amélia de Vasconcelos

Texto publicado no jornal da  S. C. M. do Cartaxo.

SEARA

Do céu haveria de tombar
sobre a seara madura
calcinada pelo agreste suão
uma núvem de asas e sombras
timbrada na bruma matinal.

Para cada bico ávido
seu grão saciante
e outro e outro mais
até se acender a manhã
no rodar dos girassois
e os bichos do chão
estenderem a própria fome
à fonte da saciedade.

Maria Amélia de Vasconcelos
19-01-2015

06 março 2015

MOIRAS

Na Grécia antiga, em séculos muito anteriores à época clássica, a mitologia explicava o curso da vida humana, e também da vida dos deuses, recorrendo à imagem de um fio, o fio da vida, do qual se encarregavam três irmãs. Eram mal-amadas pelos povos que, naturalmente, as temiam, não só devido aos seus poderes mágicos superiores, como ao aspeto físico com que as concebiam e representavam: três mulheres esguias e magras, de rostos fechados e inexpressivos.

A mais nova, Cloto, era a mais gentil. A sua tarefa consistia em fabricar o fio, para o que manobrava o fuso e a roca, dando, assim, início à vida. Protegia a conceção e o parto e, solicitada pelos deuses, podia, até, ressuscitar aqueles a quem esses deuses quisessem preservar. Na época clássica, a mitologia passou a atribuir a Cloto, conjuntamente com Hermes, o deus mensageiro e mercador, a invenção do alfabeto, ferramenta essencial para o avanço das civilizações.

A irmã do meio, Láquesis, trabalhava no tear, cruzando o fio, tecendo e marcando o que de bom, ou de menos bom, caberia a cada um viver. O tear, em forma de cilindro oco – a roda da Fortuna – ia sendo coberto de tecido; no topo, o tecido da boa sorte, na base, o tecido do infortúnio.

Quanto a Átropos, o seu atributo era uma tesoura e o seu trabalho, como se depreende, era cortar o fio da vida. As suas representações mais arcaicas mostram-na descarnada, ressequida e lúgubre.

Os romanos, colhendo dos gregos muitos aspectos da sua cultura, ainda que com acrescentos e miscigenações, deram às moiras a designação de Parcas e, com este nome,  se cimentou e difundiu o mito, amplamente aproveitado pela literatura e pela arte, não obstante os ensinamentos cristãos que interditavam e desacreditavam as crenças primitivas.

A partir do Renascimento, a representação destas entidades tornou-se mais rara e menos sombria, mostrando mulheres jovens e belas com os atributos das suas funções, enquanto alegoria da vida que, iniciando-se, segue um trânsito próprio até atingir o seu fim.

De longe, de muito longe no tempo, recebemos este e outros mitos. Porém, quase sempre, eles nasceram no mesmo berço: a Grécia, esse país europeu de montanhas e ilhas, habitado por povos que, expandindo os seus territórios, alguns inóspitos, deixaram noutros povos marcas tão profundas que ainda sobrevivem. Entre nós, portugueses, sabemos bem o que significa «a roda da fortuna», a par com a imagem dos «alcatruzes da nora», como também sabemos o que é «estar por um fio». Estas expressões tão comuns são heranças imateriais que passaram de geração para geração, mantendo a mesma carga cultural e o mesmo significado. Roladas durante séculos, estas palavras estão vivas e não perderam o exato conteúdo.

Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no jornal da  S. C. M. do Cartaxo.