30 setembro 2010

INTIMIDADE

Sílaba átona
calada no final da rima
a conta que não conta
na vibração do som.

O silêncio pardo
sem urgência
a saída veludosa
a cor pastel
o sabor do mel
em lábios de cardo.

Opaca e diluída
na atonia de ser assim
penumbra de quase dia
candeia do orvalho.

A sílaba átona
é a pele do poema
o cair do pano
no final da cena.

Com ela me confirmo
dela me revisto
poeira fina
dos meus dias.

Maria Amélia de Vasconcelos

FORGARRA

Forgarra não é uma palavra rolada.
Forgarra não é, sequer, uma palavra, no sentido em que não serve à comunicação, nunca se ouviu pronunciar, não foi, e nem será, tão pouco, encontrada em qualquer dicionário, ninguém lhe conhece o significado.
Forgarra nasceu de uma reflexão acerca dos modos tão diversos como as pessoas se relacionam com os bens materiais, em geral, e com os de primeira necessidade, em particular, em comparação com o interesse que demonstram na apreciação do que é belo, aspecto que consideram menor, na maioria dos casos.

O tema trouxe-me à memória a fábula da cigarra e da formiga, sobejamente conhecida e citada, a preferida pelos mais velhos, olhos postos na formiga, para aconselharem a juventude a trabalhar afincadamente, a poupar tempo e a investir esforço, conseguindo, assim, gerir bem a vidinha e evitar sobressaltos financeiros.

Durante o Verão, a cigarra dedicou-se à música. E não foi o único bichinho sobre a terra a quem a inspiração do bom tempo bafejou. Grilos, sapos, rãs, libelinhas, moscardos, um coro de pássaros, cada qual com seus recursos, foi aperfeiçoando os respectivos dons.
A formiga, entretanto, trabalhou de sol a sol, carregando mantimentos para os gastos e o conforto da sua comunidade. Entesourou mais do que lhe era necessário? Estou em crer que sim.
Na hora em que os alimentos escassearam em sua casa, a cigarra recorreu à formiga, confiada na ajuda. A formiga, como reagiu? Preferiu que os excedentes que tinha apodrecessem a partilhá-los com quem tinha fome. Por causa disso, a fábula sugere defeitos de carácter à formiga: avarenta, desapiedada, vingativa, escarninha, soberba…
Esqueceu-se, porém, o «autor» - quem escreve e reescreve as fábulas não se pode lembrar de tudo, não é? - de propor uma outra causa para o comportamento da formiga: ouvido duro para a música! Tivesse ela escutado as harmonias ao seu redor, certamente teria feito uma pausa na faina, por um pouco que fosse, para as apreciar, como seria devido.
A formiga laboriosa talvez não mereça injúrias. Não terá sido a sua falta de sensibilidade para a música a razão pela qual negou ajuda à cigarra cuja arte desvalorizava porque a desconhecia? Se no seu labor tivesse feito uma pausa para fruir a beleza, outra teria sido a sua atitude.

Cigarra e formiga são apontadas aos homens como exemplos. A entrega aos prazeres, sem cuidar do essencial, a primeira; a segunda é a fura-vidas, a boa gestora, dona absoluta do que angariou. Feitios, diremos nós que conhecemos os dois estereótipos, em cada um reconhecendo o seu tanto de razão, quando as «cores» não são muito carregadas, quer para um lado, quer para o outro. Na verdade, o que nos dava jeito seguir como exemplo era a forgarra, ou melhor, uma multidão de forgarras que nos ensinassem a distribuir adequadamente os nossos dons, e não só no tempo amável em que tudo é risonho, mas também no cinzento Inverno.

Forgarra é palavra que nem existe. No entanto, andam por aí algumas forgarras, lá isso andam, conjugando sabiamente labor e lazer.
Elas são a esperança de equilíbrio no mundo, entre o ser e o ter, em partes iguais, de preferência.

Maria Amélia de Vasconcelos

Texto publicado no jornal interno da S.C.da M.do Cartaxo.

29 setembro 2010

ÁRVORE

Que nome te dou
árvore?
Qual o exacto nome
que o compêndio registou?

Ímpar entre as iguais
como dizer
teu licor de vida
tua alma universal?

Perto do teu abraço
rumo ao mais fundo de mim
ergo-me ao mais alto
no espaço.

Sustida entre a raiz e o horizonte
teu sopro me vivifica
teu hálito verde me habita
agita vagas em meu regaço.

Como nomear-te
árvore
se és o eco do além
indizível na minha voz?

Nomear-te é perder-te
para as bocas profanas
que desatam os nós
dos silêncios sem pudor.

Fica e sê.
Juntas numa só voz
cantaremos hossanas.

Maria Amélia de Vasconcelos

27 setembro 2010

O MAR



Mar em Porto Novo
Dizemos «mar» e o som sai aberto, claro, vibrante.
A palavra é curta mas contém um universo de informação tão vasto como o próprio mar. Encerra uma pluralidade de informações para quem a pronuncia, para quem a escuta, para quem nela pensa. Serão tantas as significações quantas as vivências de cada um. É uma palavra querida para os poetas, um conceito abrangente para os filósofos, uma emoção para os artistas, um objecto de constante estudo para os cientistas, um campo de trabalho árduo para pescadores e marinheiros, um refúgio para o lazer, uma pista para os desportos…

Mar congrega amor, espanto, temor; sempre emoções fortes.
Nunca esquecerei a emoção desmedida de uma criança que, numa visita de estudo, contemplou, pela primeira vez, o mar. Ainda dentro do autocarro, de braços erguidos, clamava MAR, MAR, MAR, para depois balbuciar, recolhida, repetidamente, «mar» como se quisesse guardar para sempre aquele deslumbramento.

Este Verão voltei a conviver com o mar. Não uma daquelas visitas rápidas, de cortesia, só umas horas, o tempo de dizer «olá, estou de novo aqui, não sabes como sentia saudades…». Não, desta vez foram uns dias pausados, umas férias que permitiram uma conversa longa que era preciso pôr em dia. Conversa íntima, é claro, que não é chamada para este escrito, voltado para a realidade que fui encontrar.

O local, que tão bem conheço, recebeu muitas beneficiações: passadiços suspensos para o acesso à praia, uma forma de proteger as dunas, muitas quase planas já, devido aos abusos de quem, pelo facto de possuir um veículo «adequado», julga poder pisar a eito; mais e melhores passadeiras na praia; restauro dos apoios de praia; um posto de socorros; um passeio pedonal e uma ciclovia, ambos bem sinalizados.

Fiquei contente por ver, posta em prática, a legislação que visa proteger o ambiente e dar segurança aos utentes. Igualmente louvo o empenho autárquico na concepção dos equipamentos, bem como na sua boa conservação e limpeza. Custa muito caro manter o que foi instalado para o conforto e a segurança dos banhistas, preservando, ao mesmo tempo, a riqueza ambiental pela qual, é obrigação de todos, velar.

Há, porém, um ponto negativo que quero assinalar. Na véspera de terminarem as minhas férias, na entrada de um passadiço, entre o parque de estacionamento automóvel e o passeio pedonal, dei conta de dois pequenos escaravelhos, aos ziguezagues, tentando fazer caminho entre algo que lhes entravava o percurso. Sabem os leitores o que dificultava a vida aos bichinhos? Pois, nem mais nem menos, do que uma apreciável quantidade de beatas de cigarros, muito juntas, o que é indício da pressa, da pouca sensibilidade (ou civismo?) de um qualquer automobilista que despejou, em local protegido, o cinzeiro do seu carro, exactamente ao lado de um caixote do lixo!

Aplausos, pois, para a legislação ambiental; aplausos para a autarquia que a cumpre. Lamentavelmente, um olhar de amarga descrença sobre os nossos contemporâneos que ainda não entenderam que a Terra é a nossa casa comum. É preciso continuarmos a insistir no discurso da protecção ambiental para que todos o oiçam, como ouvimos o canto do mar, sempre presente na nossa memória.

Maria Amélia de Vasconcelos

Texto publicado no jornal interno da S.C.da M.do Cartaxo.

25 setembro 2010

CREPÚSCULO

Nem o tempo para uma prece
entre o círculo de luz crua
e o véu crepuscular
avançando em tropel
sobre o espelho do mar.

No cimo do morro
ainda o sol a pique
sem um aviso de sombra
nem um sussurro de brisa
que fique como sinal.

Nada para anunciar
o cenário irreal:
o sol rompendo o mar
o azul afogado em fogo
sorvido até à última onda
quebrada atrás do Mussulo.

E logo se desvanece a ilha
de névoa revestida
logo se adensa e escurece.
Nem o tempo de uma prece
nem a Deus um louvor
por tamanha maravilha.

A noite se ergue inteira
feiticeira de brando rumor.
Dia e noite um só instante
mais breve que uma prece.

Quem sentiu jamais esquece.

Maria Amélia de Vasconcelos

21 setembro 2010

ALCACHOFRAS


Alcachofras em flor
Em Maio já deixam ver as cabecinhas, de um roxo azulado, no topo das hastes firmes. Elas aí estão, as alcachofras, rompendo ao acaso em qualquer canto, às vezes entre as pedras, compondo com garbo o jardim de flores silvestres que é o nosso país na Primavera.

Bem defendidas pela pele espinhosa, sendo, como são, cardos, não as julgo apetecíveis, como alimento, pelos animais. Talvez as cabras as possam tasquinhar, quando tenras, ou os dromedários do norte de África, onde também são espontâneas.

Há, no entanto, uma espécie de alcachofras cultivadas que constituem um pitéu muito apreciado em alguns países da Europa. São caras e requintadas mas ficarão de fora desta conversa, à qual só são admitidas as alcachofras maninhas, colhidas por ocasião dos santos populares: Santo António, São João e São Pedro, o último evocado pela Igreja no mesmo dia que São Paulo que, sabe-se lá porquê, não incorpora a lista dos festejados popularmente. Estas comemorações de Junho vão enraizar em costumes anteriores ao Cristianismo, quando se celebrava o solstício de Verão.

Quando o asfalto ainda não cobria as ruas e travessas das povoações ribatejanas, acendiam-se fogueiras em Junho, às portas das casas, nos dias doze, vinte e três e vinte e oito, vésperas dos dias consagrados aos três santos. Vides e alguma carqueja para o fogo inicial que ia crescendo, depois, com o rosmaninho, o alecrim e a alfazema, em chamas de altura variável, eram os cheiros que perfumavam o ar e convidavam a mocidade a saltar fogueira. Havia grupos que percorriam a povoação saltando as fogueiras e lançando «cobrinhas», ou bichas de rabiar, e outros pequenos arremedos de fogo-de-artifício, em forma de cilindros, os quais, rolados entre as mãos, produziam pequenas faíscas; eram os «valeverdes» acrescentando brilho às noites de folia. Em casas abastadas ou onde se celebrasse qualquer festa familiar coincidente com a festa popular, podia tocar um acordeon ou um gira-discos, colocado estrategicamente perto da janela, para que a música fosse fruída por todos.

Perto da meia-noite, «deitava-se» a alcachofra, mais as raparigas que os rapazes, se a memória não me falha. Era uma coisa simples: «deitar» a alcachofra era queimar levemente a inflorescência numa fogueira já em declínio, enquanto o pensamento se concentrava no(a) amado(a). A seguir, espetava-se a alcachofra num canteiro ou num vaso, confiando que, pela manhã, estivesse fresca como quando fora colhida. Essa frescura, em particular se a noite tivesse sido de luar, era o sinal inequívoco de que o amor era correspondido.

Não valia, porém, a pena guardar uma alcachofra refllorida no Santo António para a voltar a queimar na fogueira do São João ou do São Pedro. Experimentei isso algumas vezes, graças ao «bichinho» da racionalidade, por teima em descobrir se o milagre se repetia sem limites, mas, na manhã seguinte, nada mais havia a não ser uma alcachofra requeimada, de fazer dó, sem ânimo para reflorir. É que este tipo de milagres são assim mesmo: os génios que os produzem não se deixam enganar pelas cabeças que julgam poder reduzir o que é mágico a fenómenos físicos, previsíveis, comprováveis.

Testemunho, aqui, essa lição que aprendi: só tocamos a magia quando deixamos o coração e a mente completamente abertos para que ela livremente se manifeste e faça caminho dentro de nós.

A magia é, tão somente, o reflorescimento da esperança, o quinhão de esperança que a cada um cabe, em cada nova manhã.

Maria Amélia de Vasconcelos

Texto publicado no jornal interno da S.C.da M.do Cartaxo.