Alcachofras em flor |
Bem defendidas pela pele espinhosa, sendo, como são, cardos, não as julgo apetecíveis, como alimento, pelos animais. Talvez as cabras as possam tasquinhar, quando tenras, ou os dromedários do norte de África, onde também são espontâneas.
Há, no entanto, uma espécie de alcachofras cultivadas que constituem um pitéu muito apreciado em alguns países da Europa. São caras e requintadas mas ficarão de fora desta conversa, à qual só são admitidas as alcachofras maninhas, colhidas por ocasião dos santos populares: Santo António, São João e São Pedro, o último evocado pela Igreja no mesmo dia que São Paulo que, sabe-se lá porquê, não incorpora a lista dos festejados popularmente. Estas comemorações de Junho vão enraizar em costumes anteriores ao Cristianismo, quando se celebrava o solstício de Verão.
Quando o asfalto ainda não cobria as ruas e travessas das povoações ribatejanas, acendiam-se fogueiras em Junho, às portas das casas, nos dias doze, vinte e três e vinte e oito, vésperas dos dias consagrados aos três santos. Vides e alguma carqueja para o fogo inicial que ia crescendo, depois, com o rosmaninho, o alecrim e a alfazema, em chamas de altura variável, eram os cheiros que perfumavam o ar e convidavam a mocidade a saltar fogueira. Havia grupos que percorriam a povoação saltando as fogueiras e lançando «cobrinhas», ou bichas de rabiar, e outros pequenos arremedos de fogo-de-artifício, em forma de cilindros, os quais, rolados entre as mãos, produziam pequenas faíscas; eram os «valeverdes» acrescentando brilho às noites de folia. Em casas abastadas ou onde se celebrasse qualquer festa familiar coincidente com a festa popular, podia tocar um acordeon ou um gira-discos, colocado estrategicamente perto da janela, para que a música fosse fruída por todos.
Perto da meia-noite, «deitava-se» a alcachofra, mais as raparigas que os rapazes, se a memória não me falha. Era uma coisa simples: «deitar» a alcachofra era queimar levemente a inflorescência numa fogueira já em declínio, enquanto o pensamento se concentrava no(a) amado(a). A seguir, espetava-se a alcachofra num canteiro ou num vaso, confiando que, pela manhã, estivesse fresca como quando fora colhida. Essa frescura, em particular se a noite tivesse sido de luar, era o sinal inequívoco de que o amor era correspondido.
Não valia, porém, a pena guardar uma alcachofra refllorida no Santo António para a voltar a queimar na fogueira do São João ou do São Pedro. Experimentei isso algumas vezes, graças ao «bichinho» da racionalidade, por teima em descobrir se o milagre se repetia sem limites, mas, na manhã seguinte, nada mais havia a não ser uma alcachofra requeimada, de fazer dó, sem ânimo para reflorir. É que este tipo de milagres são assim mesmo: os génios que os produzem não se deixam enganar pelas cabeças que julgam poder reduzir o que é mágico a fenómenos físicos, previsíveis, comprováveis.
Testemunho, aqui, essa lição que aprendi: só tocamos a magia quando deixamos o coração e a mente completamente abertos para que ela livremente se manifeste e faça caminho dentro de nós.
A magia é, tão somente, o reflorescimento da esperança, o quinhão de esperança que a cada um cabe, em cada nova manhã.
Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no jornal interno da S.C.da M.do Cartaxo.
Sem comentários :
Enviar um comentário