Forgarra não é uma palavra rolada.
Forgarra não é, sequer, uma palavra, no sentido em que não serve à comunicação, nunca se ouviu pronunciar, não foi, e nem será, tão pouco, encontrada em qualquer dicionário, ninguém lhe conhece o significado.
Forgarra nasceu de uma reflexão acerca dos modos tão diversos como as pessoas se relacionam com os bens materiais, em geral, e com os de primeira necessidade, em particular, em comparação com o interesse que demonstram na apreciação do que é belo, aspecto que consideram menor, na maioria dos casos.
O tema trouxe-me à memória a fábula da cigarra e da formiga, sobejamente conhecida e citada, a preferida pelos mais velhos, olhos postos na formiga, para aconselharem a juventude a trabalhar afincadamente, a poupar tempo e a investir esforço, conseguindo, assim, gerir bem a vidinha e evitar sobressaltos financeiros.
Durante o Verão, a cigarra dedicou-se à música. E não foi o único bichinho sobre a terra a quem a inspiração do bom tempo bafejou. Grilos, sapos, rãs, libelinhas, moscardos, um coro de pássaros, cada qual com seus recursos, foi aperfeiçoando os respectivos dons.
A formiga, entretanto, trabalhou de sol a sol, carregando mantimentos para os gastos e o conforto da sua comunidade. Entesourou mais do que lhe era necessário? Estou em crer que sim.
Na hora em que os alimentos escassearam em sua casa, a cigarra recorreu à formiga, confiada na ajuda. A formiga, como reagiu? Preferiu que os excedentes que tinha apodrecessem a partilhá-los com quem tinha fome. Por causa disso, a fábula sugere defeitos de carácter à formiga: avarenta, desapiedada, vingativa, escarninha, soberba…
Esqueceu-se, porém, o «autor» - quem escreve e reescreve as fábulas não se pode lembrar de tudo, não é? - de propor uma outra causa para o comportamento da formiga: ouvido duro para a música! Tivesse ela escutado as harmonias ao seu redor, certamente teria feito uma pausa na faina, por um pouco que fosse, para as apreciar, como seria devido.
A formiga laboriosa talvez não mereça injúrias. Não terá sido a sua falta de sensibilidade para a música a razão pela qual negou ajuda à cigarra cuja arte desvalorizava porque a desconhecia? Se no seu labor tivesse feito uma pausa para fruir a beleza, outra teria sido a sua atitude.
Cigarra e formiga são apontadas aos homens como exemplos. A entrega aos prazeres, sem cuidar do essencial, a primeira; a segunda é a fura-vidas, a boa gestora, dona absoluta do que angariou. Feitios, diremos nós que conhecemos os dois estereótipos, em cada um reconhecendo o seu tanto de razão, quando as «cores» não são muito carregadas, quer para um lado, quer para o outro. Na verdade, o que nos dava jeito seguir como exemplo era a forgarra, ou melhor, uma multidão de forgarras que nos ensinassem a distribuir adequadamente os nossos dons, e não só no tempo amável em que tudo é risonho, mas também no cinzento Inverno.
Forgarra é palavra que nem existe. No entanto, andam por aí algumas forgarras, lá isso andam, conjugando sabiamente labor e lazer.
Elas são a esperança de equilíbrio no mundo, entre o ser e o ter, em partes iguais, de preferência.
Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no jornal interno da S.C.da M.do Cartaxo.
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