18 novembro 2013

PÃO POR DEUS


Os doces estavam dispostos num tabuleiro, na entrada da casa, como é costume todos os anos. Passou-se a manhã sem que nenhuma criança tocasse a campainha. De tarde também não veio ninguém pedir o Pão por Deus.
Eu sabia da supressão do feriado no dia de Todos os Santos mas, ainda assim, contava com as crianças no final da tarde, depois das aulas, se bem que a tradição dite que só a manhã seja aproveitada para a «esmola» por Deus. Pensei que, talvez, mercê do calendário, a ronda pelas casas passasse para o dia de Fieis Defuntos, calhando, este ano, ao sábado, ou que, como acontece com a quinta-feira de Ascensão, fosse cumprida no domingo seguinte. Esperanças goradas. Este ano, onde moro, não houve Pão por Deus; e tive pena que tal acontecesse.

As tradições, património imaterial dos povos, tendem a esbater-se, sobretudo nos grandes centros em que, vindas de realidades muito diversas, as pessoas levantam as âncoras que as ligavam aos lugares e às práticas dos seus antepassados.

O Pão por Deus tem origens remotas e obscuras.
Os povos antigos cultuavam os mortos, aos quais, em época determinada, faziam oferendas de comida. Era um repasto ritual em que os vivos não participavam. Nas sepulturas eram deixados alimentos, juntamente com luzes que tinham a função de alumiar as almas errantes.
No século VI a Igreja proibiu as demonstrações da crença de uma comunicação entre os vivos e os defuntos. Com o tempo que tudo dilui, o culto perdeu os contornos pagãos e veio a cristianizar-se na instituição do Dia de Finados, a 2 de novembro.
Contudo, a partilha dos alimentos sobreviveu, com variantes, de país para país ou de região para região, tendo como alvo, já não os mortos, mas as crianças – os mais puros – que, de porta em porta, pedem o Pão por Deus.
Esse pão seria, inicialmente, verdadeiro pão, ou o grão para a farinha. A esse alimento foram sendo acrescentados os frutos colhidos no início do outono: romãs, nozes, amêndoas, castanhas. Mais tarde, as broas tomaram o lugar do pão, acompanhando os frutos que se dão, nos Santos, a quem pede o Pão por Deus.
Nalgumas vilas e aldeias de Portugal, as broas dos Santos, diferentes das do Natal, são feitas para consumo só dessa época. Azeite fervente, mel, farinha, canela e erva-doce são os ingredientes que fazem umas broas escuras que se enfeitam, por cima, com a metade de uma noz, antes de irem ao forno.
O dia a dia apressado da vida moderna pode não dar tempo nem alento para a confeção das broinhas. Que não seja essa a desculpa para não atendermos as crianças. O comércio está cheio de coisas boas que alegram os miúdos e são más tentações para os mais crescidos…

Tal como, sem aparente contestação, foi retirado o feriado/dia santo do 1º de Novembro, também poderia ser concertado, entre governantes e governados, que, no domingo seguinte (dia de Todos os Santos) , se haveria de ir pedir o Pão por Deus onde fosse esse o costume. Deste modo, não se apagaria uma tradição de generosidade, ainda que simbólica, que tem unido gerações de um povo.

É que, raiz a raiz, mesmo as capilares, esvai-se a alma coletiva até ao ponto –e para longe vá o agoiro! – em que já não saibamos quem fomos.  

Maria Amélia Timóteo
Texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.

14 outubro 2013

A BIENAL DE CORUCHE

A escassas   horas do seu encerramento, visitei a bienal de artes plásticas de Coruche.
Desde 2003, creio que não devo ter «falhado» mais do que duas exposições e delas sempre tenho trazido um sentimento de gratidão.
Ver arte faz bem ao espírito, alarga-o, oferece-lhe harmonia, ou desarmonia, provoca interrogações, leva à descoberta de outras abordagens de um tema ou à imaginativa utilização dos materiais.
Toda a interação entre os objetos expostos e quem os olha não é inócua nem vã, pois deixa sempre uma marca, qualquer que ela seja, dure o tempo que durar. É por causa dessa marca que me sinto grata.
Ver arte é mais do que uma viagem de observação; é uma migração até ao continente do desassossego interior, onde só podemos permanecer enquanto o estremecimento o consentir.

Este ano, Coruche deu destaque à escultura e à instalação. Pintura, cerâmica, trabalhos em madeira de menor dimensão, ocuparam uma sala, em formato clássico e bem comportado.
Denominada «Percursos com Arte», a bienal usou o espaço público e levou os visitantes a percorrerem as ruas do centro histórico, limpíssimas, floridas e bem pavimentadas.
Como os tempos que vivemos são de recessão económica, uma parte significativa do comércio local fechou portas. Então, algumas das montras e interiores das lojas tornaram-se o cenário para que os artistas, reconfigurando o espaço, mostrassem as suas peças; outras peças/instalações exibiram-se ao ar livre nas ruas, praças e jardins, em diálogo com a envolvente natural ou edificada.

O catálogo é elucidativo quanto às notas biográficas dos artistas e respetivos percursos. Não esquece, porém, os contributos de firmas e instituições que ajudaram a erguer a bienal. Entre as últimas, destaco os Centros de Dia e as Associações Seniores do
concelho.
Se aos artistas se pede que estabeleçam os conceitos para as suas criações – já Leonardo da Vince escrevia que «a arte é coisa mental» - os artesãos, no ativo ou retirados pela sua idade, detêm saberes de muita valia que a sociedade não pode, nem deve, deixar de aproveitar.
E, porque o catálogo também tece agradecimentos às Creches e Jardins de Infância, não posso deixar passar em claro a ideia que me parece subjacente a esta mostra: os «percursos com arte» não são só percursos no espaço mas, igualmente, percursos no tempo, inter-geracionais, em que uns dão o solo estável da experiência, e, outros, dão o ar e o fogo da irrequietude, próprios dos mais jovens.
Quanto à arte, não escolhe geografias nem tempos porque é o falar da alma.
 
Maria Amélia Timóteo
Texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.

CORUCHE - O ENTARDECER

22 setembro 2013

REGRESSO À FOZ

Regresso de umas curtas, mas pausadas, férias e trago comigo o som do mar, o cheiro das marés, a coreografia das ondas e mais as esculturas das brechas, poças e vãos que elas escavam, com infinita persistência, na rocha dura que se atreve a chegar-se mais perto da mole de água que vai e vem, ao ritmo sábio da natureza.

A contemplação do mar nunca me cansa. O seu leque de cores não é imitável em nenhuma obra que o homem empreenda, por mais perfeita que seja. Apenas se criam aproximações, «impressões» do olhar num dado instante. Disso – e de outras impressões – falaram largamente os pintores impressionistas há mais de cento e cinquenta anos. Hoje as suas obras continuam a maravilhar-nos pela técnica e pela intuição com que esses mestres souberam captar o momento. São belíssimas pinturas que, particularmente, admiro. Mas o mar transcende todas as abordagens da Arte. Mesmo a música, a mais abstrata e espiritual de todas as artes, apenas roça, ao de leve, o que de sublime o mar envolve.

Estive, pois, junto do mar e, da sua inexcedível beleza, acabo de dar testemunho.
Porém, os meus olhos viram outras realidades.
Encontrei pessoas com as quais estabeleci breves contactos, pessoas de várias idades, com vidas vividas com um sorriso, apesar dos dramas que carregam. Falei com jovens com empregos a curto prazo, à espera de «saltarem» para qualquer outra situação nebulosa, sem horizontes nem contornos de esperança. Também eles sorriem, talvez só por serem jovens, pois a situação social está em maré baixa e, em termos de ofertas de trabalho, pouco propícia à alegria genuína. Falei com pessoas com projetos, coisas simples como pescar dois ou três peixes numa tarde de lazer; ou outros, mais complicados, como editar um livro, resultado de anos de observação, imaginação e estudo…

Deixo para o fim o que deveria ter sido o corpo principal deste texto: a indignação. É uma indignação visceral que, cada vez mais, me impele a que diga BASTA a tanta poluição que nos rodeia. E não é poluição produzida pela busca de conforto, o conforto a que todos temos direito. Não. Trata-se de sujidade, lixo que alguns – presumo que muitos – largam por onde passam: pontas de cigarros, embalagens de vidro, de plástico, de metal, papelão, papeis, enfim, detritos de toda a ordem, largados onde calha, na casa comum que é o espaço público. O local desta incivilidade deveria ser o cartão de visita de uma vila que vive do turismo, a Praça Sá Carneiro, da Foz do Arelho, exemplo acabado da falta de cultura para a cidadania que, infelizmente, é endémica entre nós. O nome honrado de um português ilustre fica mal quando atribuído a um espaço tão degradado.
Há dois ou três anos tinha estado junto ao cais da Lagoa e, na sua modéstia, era um lugar harmonioso e limpo, onde apetecia parar. Agora, é uma lástima, uma dor de alma passar por ali.
Fiz esse caminho algumas vezes para aproveitar do trilho pedonal lançado para preservar o meio natural, à beira da água. A construção desse caminho, com cartazes interpretativos, mostra que houve sensibilidade por parte das entidades públicas. Talvez faça falta, então, alguma vigilância para evitar que, por contágio, se chegue à situação lamentável da praça do cais, o que me parece muito provável pois é no cais que começa o trilho e, bem perto deste início, encontra-se o parque para caravanas, um sítio deprimente, sem as condições mínimas de apresentação e, certamente, de conforto.
O forçado convívio com o desleixo deixou um travo amargo nas minhas férias.
Até quando permitiremos que alguns estraguem um bem que é de todos?
 
Maria Amélia Timóteo
Texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.

23 agosto 2013

CASINHAS

Nós, portugueses, gostamos de usar diminutivos a propósito de tudo e nada. Usamo-los para as coisas pequenas, ou que queremos fazer crer que o são, desvalorizando-as; mas, sobretudo, com sentido carinhoso ou valorativo. Nesta aceção, ouvimos dizer que fulano tem uma «vidinha» confortável e despedimo-nos desejando «saudinha»; enfim, poderíamos trazer à conversa uma torrente de exemplos para demonstrar que os diminutivos estão, por assim dizer, na ponta da língua da gente lusitana.

Nos encontros SentiArte, uma amiga questionou-me, algumas vezes, acerca de uma canção interpretada por Milú num dos filmes produzidos na década de quarenta do século XX. Eu recordava-me do filme, mas a música que tinha no ouvido era a que os Xutos divulgaram, numa versão rock em que só usaram a primeira estrofe da letra. Porém, neste nosso mundo ágil na comunicação, nada mais fácil do que recorrer à internet, procurar a canção e ouvi-la no original. Foi o que fiz e fiquei surpreendida com a qualidade do som, muito límpido, e pela orquestração, muito rica e trabalhada. No que respeita à letra, ela corresponde a uma certa corrente ideológica cujos valores assentam na pequenez, com ou sem diminutivos, e na felicidade que se alcança (?) sendo-se modesto, humilde e – valor dos valores – não tendo ambições, o que julgo ser contra-natura pois nunca conheci ninguém que não albergasse, dentro de si, uma ambição, qualquer que ela fosse. Resumindo: a canção chama-se, ou é conhecida como «A Casinha», casinha que é uma água-furtada, em Alfama, onde mora uma jovem ladina que, assim reza o refrão, considera que «quase sempre o lar dos pobres/ tem mais alegria». É um retrato da pobreza urbana, assumida e contente (?) com a sua sorte.

O «cancioneiro» nacional de meados do século XX tem vastos exemplos de tal mentalidade. Quem não se lembra de «Uma Casa Portuguesa» onde «fica bem/ pão e vinho sobre a mesa…»? E mais: com «o sol da primavera» a bater nas «quatro paredes caiadas», « basta um pouco, um poucochinho para alegrar/ uma existência singela…». É a versão rural da mesma felicidade urbana que, no dizer da pedagoga Irene Lisboa, consiste em ter uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma.

No programa «Melodias de Sempre» que, há décadas, a RTP transmitia e ia repetindo, lembro parte de uma canção cujo título desconheço. Assim se cantava: «…sem ambições/ cada qual seu pão granjeia/ e à noite há serões/ à luz da candeia.». Tudo se mantém, pois, ordenado, bucólico, sereno, despojado, sem o sobressalto das ambições. A luz da candeia é frouxa, é certo, mas, ainda assim, é uma luz!

O século XX terminou com legítimas ambições: tetos mais altos do que os das mansardas, algumas proteínas e vitaminas sobre a mesa, luz elétrica para que se pudesse ler e espreitar o mundo através de um écran. Na verdade, estas ambições, no século XXI, não foram ainda plenamente alcançadas.
Enquanto escrevo e vou relendo o que atrás fica registado, sinto que a ideologia do pequenino, do poucochinho, se encontra latente, talvez pronta a instalar-se às claras, pois os tempos difíceis são propícios ao baixar dos braços, ao desfalecimento das ambições.
E, sem ambições, e porque elas têm a natureza dos sonhos com raízes na terra, nada prospera. Alerta, pois! E que vivam as ambições!

Maria Amélia Timóteo
Texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.

ACOLHER


EX OVO



20 julho 2013

FÁBULAS

Uma das mais conhecidas fábulas de La Fontaine é a que nos conta que, um certo dia, a Lebre desafiou a Tartaruga para uma corrida. Sabendo que era muito mais ágil e rápida do que a opositora, a Lebre compareceu no ponto de partida mas, como, em breve, o seu avanço era notório, decidiu fazer uma sesta e deixou-se cair, bocejando, à sombra de uma árvore.
Quando acordou, a Tartaruga era só um ponto escuro, lá ao longe, pertinho da meta. Recomposta do espanto, a Lebre lançou-se a toda a velocidade, tentando recuperar o tempo perdido. Tarde de mais, contudo, pois, quando, sem fôlego, chegou à meta, já a Tartaruga a tinha transposto e esperava, pacientemente, ver reconhecida a sua vitória.
La Fontaine retira da fábula a seguinte moral: mais vale quem luta para atingir um objetivo do que quem, facilmente, o pode atingir mas não se esforça o bastante para lá chegar.
Não ficamos a saber se a Lebre se irritou com o desfecho da aposta ou se tentou inventar boas desculpas para justificar a sua derrota. O estado de espírito das personagens não é chamado para a história. E ainda bem, pois, assim, quem conhece a fábula, pode especular sobre que final, em sua opinião, melhor convirá, e, por assim dizer, poderá prosseguir até onde a sua imaginação o levar, desde que não ofenda a dignidade dos simpáticos animais que foram escolhidos para espelharem os comportamentos humanos.
Ora, com a liberdade que nos dá «recontar» uma história consabida, vamos trazê-la para a atualidade, mantendo as personagens e o cenário da ação.
E ficaria como segue a velha fábula:

Numa fresca manhã de Junho ( ou de qualquer outro mês), a Tartaruga, que estava de férias, dispôs-se a viajar para conhecer mundo.
Achando perigosa a auto-estrada, decidiu enveredar por um caminho de terra que atravessava uma floresta.
Pára aqui, pára ali, acercava-se de uma clareira no preciso momento em que o seu telemóvel tocou. Atendeu a chamada um pouco contrariada pois o número era desconhecido.
- Sim?
- Olá, comadre Tartaruga. Daqui fala a Lebre. Lembra-se de mim?
- É claro que me lembro…
E na testa da Tartaruga formou-se uma ruga de desconfiança.
- Soube, através de um e-mail de um amigo que a comadre anda em passeio
- Hum…sim.
- Então, ocorreu-me que poderia passar aqui pela minha toca, descansava e podíamos, depois, fazer juntas um pouco de exercício.; talvez uma corrida. Que acha da ideia? Topa? 
- Ó comadre, a sua ideia até podia ser gira mas não posso aceitá-la.  É que, ainda ontem, estive a ver um filme em que uma Lebre, atrevida e insolente, desafiava uma Tartaruga simplória para uma corrida. Era uma história antiga, com um argumento fraquinho, um desempenho medíocre…
- Mas, comadre, se calhar não gostou do filme porque a Lebre ganhou, sem dúvida, a corrida e…
- Engana-se, comadre! A vencedora foi a Tartaruga que não perdeu tempo, sempre com o fito de chegar à meta. E, quer saber a melhor? A Lebre, enquanto a Tartaruga caminhava, esteve a dormir! Hi…hi…hi…
- Comadre, isso são histórias. Agora, em pleno século XXI, uma coisa dessas não tem cabimento.
 - Anda distraída, comadre. Não lê os jornais? Não assiste aos noticiários? Agora, como dantes, há sempre quem queira divertir-se à custa dos mais fracos, ou dos mais ingénuos…
- Eu não faria tal coisa, comadre. Respeito-a muito, como sabe.
- Sei, sim, comadre Lebre. Mas eu estou noutra. Desloco-me ao meu ritmo, com a minha casinha sempre a jeito, pronta a acampar onde mais me convier. Não me interessam corridas. Cada um tem as suas metas e agora aquela que quero atingir é muito simples: ver o mundo para tentar conhecê-lo melhor.

Com estas palavras acabo a versão moderna da fábula. Quem quiser poderá acrescentar-lhe outras palavras ou virar do avesso toda a narrativa. Tanto faz.

Se alguma moral se pode tirar da versão que aqui deixo é que os ingénuos são só ingénuos; não são tolos. E, mais tarde ou mais cedo, aprendem a manter à distância os vivaços que encontram pelo caminho.

Maria Amélia Timóteo
Texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.

16 junho 2013

PEIXE-SOBA

O rio era uma bênção, um pai extremoso que derramava as suas águas até à orla da floresta no tempo das chuvas.
Quando a grande pedra cravada no leito lançava golfadas de água e lama vermelha, numa espessa massa ruidosa e bravia, recolhiam-se as pirogas, puxadas a braços até ao alpendre da cubata maior. Aí ficavam nos meses das chuvas, aí eram limpos os seus cascos e eram remendadas com madeira nova, atada com lianas. Assim descansavam até que se avistasse o dorso cinzento do Peixe-Soba.

Os rapazes mais ágeis da aldeia subiam às árvores próximas da margem, nas noites de lua cheia, à escuta do rumor da cascata e à espera de que, por entre a névoa prateada, surgisse a grande rocha que o rio esculpira em forma de peixe, cuja cabeça apontava para a sanzala. O primeiro que avistava a cauda hirta, na outra margem, corria até à cubata grande, a dar o aviso. Como prémio, era-lhe permitido acompanhar o soba-grande e o soba-pequeno nas cerimónias do dia seguinte.

Só os muito velhos e os muito pequenos ficavam na aldeia, por não terem forças para empreender a caminhada que se iniciava com os primeiros raios de sol.
À frente, com os toucados de pele e os bastões de comando levantados, apertando o punho gravado com desenhos de aves de asas estendidas, caminhavam os dois sobas. Logo atrás, levando nos braços um peixe talhado em madeira, seguia o jovem que trouxera a notícia de que o rio recolhera ao seu leito. Depois, em linha, seguiam os caçadores com os seus arcos e as aljavas das flechas, batendo os pés e entoando um cântico guerreiro com que ritmavam o passo do cortejo. Os pescadores, de redes ao redor da cintura, fechavam o primeiro grupo.
Uns passos atrás, as mulheres, com os panos garridos e, à cabeça, os balaios com os frutos que a terra concedera na última colheita, formavam a cauda da procissão.

Junto à margem, o soba-grande entoava uma arrastada ladainha, convocando os espíritos dos antepassados para se associarem aos louvores devidos ao Peixe-Soba, cuja imagem de madeira o soba-pequeno mantinha submersa. Ao mesmo tempo, os caçadores mergulhavam os arcos e os pescadores as redes, enquanto as mulheres lançavam punhados de sementes que o cachão turvo do rio fazia rodopiar e logo desaparecer.

Dava-se, assim, início a um novo ciclo de vida comunitária. As mulheres recomeçavam a depositar os grãos na nata que o rio deixava, após as chuvas. Os homens podiam, agora, internar-se na floresta e, seguindo as pisadas dos animais, encontrar peças de caça. As pirogas deslizavam outra vez no rio plácido e voltavam à tardinha, pesadas da pescaria.

Na aldeia, a mãe-grande era a mestra que preparava as adolescentes para os ritos de passagem à idade adulta, revelando segredos, ensinando sobre ervas e raízes, repetindo o que gerações de mulheres, antes dela, já tinham escutado.

O soba-pequeno instruía os rapazes nas lutas, no uso dos arcos e das redes, incitava-os a proezas arriscadas para que ficassem aptos a vencerem as provas que teriam de prestar para se tornarem homens.

Os anciãos, depositários de saberes ancestrais, reuniam-se à volta do soba-grande para, em conselho, administrarem a aldeia e para, usando as palavras e os gestos mágicos, impedirem o Peixe-Soba, ao mesmo tempo amado e temido, de mostrar todo o seu corpo.

Se, por desgraça, esse dia chegasse, o rio deixaria de correr e a aldeia desapareceria, engolida pela voracidade do Peixe-Soba.

Maria Amélia Timóteo
Texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.

Rio Tejo

CALOS

Os verbos que se referem a ações são, geralmente, palavras descomplicadas e fáceis de reconhecer. Ainda assim, alguns ganham peso, ficam substantivos. Quando ouvimos «jantar» e não sabemos o contexto em que a palavra é aplicada, tanto se pode tratar da refeição do fim do dia (substantivo) como do ato de ingerir comida (verbo).
Isto é apenas um exemplo entre tantos outros que poderíamos apontar.
Um verbo que usamos com frequência, quer na sua mais simples aceção, quer em frases feitas ou ditados populares, é «calar». Ainda que pareça simples, quantos significados tem, verdadeiramente, «calar»? É não emitir qualquer som? É não responder, por palavras, a uma interpelação? É guardar um segredo? É levar a que o interlocutor fique em silêncio ou desista de uma qualquer intenção? É, ou poderá ser, tudo isto, dependendo das circunstâncias em que «calar» for usado.

O indicativo presente do verbo calar é «eu calo». Ora, «calo» poderá ser um substantivo, quando aplicado à pele espessa e endurecida das mãos ou dos pés, testemunhos de trabalhos pesados ou de sapatos apertados, ou, no plural, «calos», como chamamos às marcas que a vida deixa no nosso espírito, as dolorosas, entenda-se, pois que as que não doeram não são calos, mas recordações felizes.

Na linguagem de todos os dias, já ouvimos a expressão «pisar os calos». É um sentido figurado que quer dizer magoar alguém, ofender profundamente. E há mais: a virtude da prudência ( ou os telhados de vidro!) que se expressa no ditado: «quem tem calos não se mete em apertos». E ainda o discurso de alguém que é, ou se considera, muito experiente num determinado assunto: «já tenho muito calo…». E mais o discurso daquele que, sendo humilde ou humilhado por outrem, se lamenta: «como e calo».

E de outros calos poderíamos falar: o pequeno triângulo cavado numa melancia para espreitar o interior e ver se está vermelhinha, a cicatriz que assinala, numa árvore, o ponto em que se fez uma enxertia, a calcificação ao redor de uma fratura óssea…

Relendo o que escrevi, acho que me calo, agora, enquanto é tempo, antes que alguém, perdida a paciência, me mande calar.

Maria Amélia Timóteo
Texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.

Cameleira

18 maio 2013

O ENTRELAÇAR DAS LENDAS

É interessante a leitura das hagiografias, isto é, das vidas de santos. São relatos envoltos em lendas que visam identificar o santo, ou a santa, situá-lo no tempo e no espaço geográfico em que ocorreram os episódios miraculosos que, através desse santo, Deus realizou. No caso dos mártires, os relatos são arrepiantes, tal a crueza das torturas e a persistência com que eram infringidas, mesmo quando, para os crentes, a vontade divina já determinara que o Seu escolhido saísse incólume das provações.
Um livro deste tipo, muito conhecido é a Lenda Dourada, do italiano Jacobus de Voragine, que descreve a vida dos santos cultuados até ao século XIII. Muitos outros escritores se dedicaram a este género literário, entre os quais alguns portugueses, como é o caso dos padres Avelino de Jesus Costa e Miguel de Oliveira.

Pela leitura destes livros, e à luz do pensamento atual, é fácil perceber que as lendas se sobrepõem aos dados históricos, frequentemente muito escassos. Grande parte dos nomes dos santos biografados por Voragine foram-se apagando da memória coletiva. Em Portugal apenas subsistem em topónimos de aldeias, lugares, montes, caminhos, fontes, ou na referência a romarias a locais onde, as ermidas agora existentes, já têm, outros padroeiros.
Um caso exemplificativo de que o culto dos santos também está sujeito a modas é o de São Gens. O próprio nome já nos soa como estranho.
Gens, em latim, significa clã, um grupo de pessoas que compartilhavam o mesmo nome de família. Mais tarde, passou a usar-se como nome próprio, masculino. Em Santarém terá havido uma capela com a invocação deste santo, junto à primitiva muralha.
Os autores que referem este santo não se entendem sobre a sua biografia nem sobre o dia em que o calendário cristão o celebra, sendo apontado quer o dia 16 de Maio, quer o dia 25 de Agosto, isto porque terá existido mais do que um santo com este nome, em épocas diversas e com atributos identificativos também diversos.

No século III d.C. , em Roma, é referido um comediante muito popular que mimava os rituais do culto dos cristãos dessa época. Um dia, a fazer o seu número, foi tocado pela graça divina e não quis, nunca mais, repetir a imitação. Reconhecido como cristão, foi martirizado por causa da sua fé. Os seus atributos são a espada do martírio, a máscara de ator e um violino.
Ainda no século III, em França, viveu um notário cristão, de nome Gens, supliciado por se recusar a registar as leis imperiais contrárias à sua fé.

Em Portugal, o culto a São Gens terá sido introduzido na diocese de Braga no século VI da nossa era. Para aumentar a confusão, a História refere que o sétimo bispo de Lisboa terá sido um venerando Gens, discípulo de um dos discípulos que São Tiago converteu na Península Ibérica.
Este São Gens bispo teria ficado órfão logo que nasceu, pois a mãe morreu no parto.
Numa das colinas de Lisboa, na colina do Monte, na Graça, existe uma capelinha que lhe foi dedicada; mais tarde, confiada aos monges agostinhos, estes mudaram-lhe o nome para Nossa Senhora da Visitação do Monte, conhecida hoje, simplesmente, por Capela do Monte, ao cimo da rua Senhora do Monte, junto ao miradouro do mesmo nome. No alpendre dessa capelinha existia uma cadeira de pedra, muito rústica, onde as mulheres grávidas se iam sentar, implorando a São Gens um parto feliz. A lenda refere que algumas rainhas ter-se-ão sentado nessa cadeira com igual propósito quando esperavam um filho.
A cadeira já não se encontra no alpendre, nem Portugal tem rainhas. Mas, este costume remete-nos para os cultos de fertilidade, tão antigos quanto os homens que, tendo atingido um adiantado estado civilizacional, entendiam a necessidade da continuação da vida animal e vegetal.
São Gens, o notário, pode ser representado com um livro. Igualmente pode ser representado como um agricultor que lavra a terra com um arado puxado por um boi e por um lobo. Estranha parelha! A explicação é simples, tratando-se de um santo e à luz de um milagre: a lavoura fora iniciada com uma junta de bois, mas, um lobo esfaimado atacou e comeu um dos bois. São Gens falou, então, ao lobo que logo amansou e se deixou prender ao arado para que a faina pudesse continuar. Mais uma vez estamos em presença da ideia de fertilidade: a terra que se rasga para receber a semente que se tornará em fruto.

Neste emaranhado de lendas e de personalidades que não são sobreponíveis, encontramos um santo – ou vários – que é padroeiro de diferentes profissões e ajuda para diversas aflições: São Gens, o protetor do bom parto, dos advogados e notários, dos agricultores, das boas colheitas, invocado contra a seca, protetor dos atores e dos músicos, trabalhadores que nem sempre as sociedades protegem como devem.
Descontado o pendor mitológico destas vidas de santos, deparamos, quase sempre, com um veio histórico que nos pode conduzir a um melhor entendimento de como era a vida e quais as crenças dos que viveram muitos séculos antes de nós.

Maria Amélia Timóteo

27 abril 2013

CONTEMPLAR

«Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra…»
Carlos Drummond de Andrade – 1902/1987

Não creio que existam palavras neutras, ou, pelo menos, completamente neutras.
É verdade que nos habituámos a usar umas «bengalas» na linguagem de todos os dias que são pouco mais do que sons sem significado. Exemplos? «Hum,hum; hã,hã; é claro; pois…», as últimas com o sentido de «concordo», como resposta ao interlucotor, final de uma conversa que não leva a lugar nenhum. Algumas destas «bengalas» correspondem a modas que, como é próprio das modas, cairão no esquecimento .Porém, enquanto duram, acrescentam colorido e vivacidade à língua.
Entre os jovens circulam sons, tais como: «ya, fixe, meu, tá», semi-palavras que valem como frases para quem domina o código. Não exigem esforço de elaboração do emissor nem de decifração do recetor; são imediatas, funcionais e efémeras, também; viverão enquanto os falantes lhes conferirem valor coloquial.

O poeta chama-nos para outro tipo de palavras, não, necessariamente, as muito elaboradas ou eruditas, mas as que são operativas, as que suscitam associações, as que têm força para transformar, as que realçam, arredando a névoa, um objeto que, agora, vemos claro, quando descortinamos a sua face oculta.

Para cada palavra mil faces, é liberdade poética, uma hipérbole de artista que sente e sabe, com a sabedoria que vai mais fundo do que os sentidos ou a razão, que, escondidos sob uma qualquer ganga, há tesouros por encontrar. Se não forem mil as faces secretas de uma palavra, que importa, se desvendarmos uma face, aquela face que buscávamos e que se nos escapava, sempre fugidia?

O poeta diz-nos para nos chegarmos mais perto porque, ao longe, tudo é vago e difuso. Perto, sim, porque só de perto se pode contemplar seja o que for, e também as palavras.
O significado de contemplar remete para o sentido da vista e para um certo quietismo perante o objeto que se examina, para que nada escape à análise. Quando se trata de palavras é o sentido da audição que sobressai, ficando a vista reservada para o grafismo com que uma palavra é representada, insonora mas significativa para quem a decifra.
As palavras são, pois, para contemplar. Eu não sabia isso, até ao momento em que contemplei os dois versos do grande poeta brasileiro que, acima, transcrevo.

Maria Amélia Timóteo
Texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.

Orgânico
Grito

18 março 2013

REDE

Escrever espontaneamente é algo que só acontece quando o impulso de registar um pensamento, uma imagem, uma fantasia, se torna urgente, sem consentir demoras.
A vida social exige, contudo, outras escritas, as quais são reguladas pela rede em que nos inserimos: relatórios, discursos, apreciações críticas, artigos temáticos ou entrevistas, às vezes trabalhos por encomenda, cartas, mesmo um qualquer recado, claro, objetivo, imediato.
Esta é a escrita mais ou menos formatada, a que tem de se cumprir no exato tempo, isto é, a escrita como obrigação. A primeira, é a escrita que flui como uma nascente que irrompe, livre de constrições, de horários e de condicionantes externas. Será rápida ou pausada, realiza-se, sem mais, ao ritmo que ela própria cria a cada nova palavra com que se expressa.
Quando se pode escrever desta forma descomprometida, em tudo livre, é a própria alma que se passeia sobre o papel ( ou sobre o teclado) e conduz a mão, perseguindo a ideia. Desta forma se constrói, fio a fio, a narrativa, numa rede tecida sem esforço, branda e segura, de nós firmes e malhas contínuas.

Refletindo acerca destas duas distintas, quase opostas, formas de escrever – uma livre; a outra, dependente das normas estabelecidas – encontrei uma palavra que a ambas é comum porque a ambas convém, na medida em que serve para configurar o respetivo significado: rede.

O emaranhado de fios que forma a sociedade assenta em códigos que facilitam a comunicação, com vista à sua eficácia e geral compreensão. Depois, para cada área dos diferentes saberes, existem termos próprios, usados pelos especialistas, e a que os leigos só acedem por mera aproximação, enredados em conceitos que não dominam. Estamos, assim, em presença de uma rede.
Quando a escrita é espontânea, a rede é muito fluida, de malhas largas e fios delgados, de modo que a comunicação tenda a alcançar uma compreensão universal. Nada de mais falso, porém. A escrita livre, não excluindo quaisquer leitores, não os busca, em concreto, nem busca o seu aplauso ou adesão. Eles poderão entrar ou sair da rede, fixar-se num ponto ou num outro, entender de uma forma ou da forma oposta, adotar como seu o discurso ou rejeitá-lo.
A escrita livre dirige-se a leitores, em absoluto, livres, mas que não podem condicionar ou orientar o que é escrito. Tocam a rede quando querem sem necessitarem de confinar-se nela. Tão pouco podem pretender alterá-la. Circulam, tão somente, entre as suas malhas.

E, como se situa, relativamente ao texto, quem o escreve?
Vai tecendo a rede, reforçando as malhas onde as sente menos firmes, alargando alguns nós, tecendo e desfazendo a teia, até dar por concluído o escrito. Quando aí chega, com intermitências ou de um só fôlego, transforma-se em leitor, igual a qualquer outro, apenas com uma pequena diferença: pode recompor, ainda, as malhas, cerrá-las ou abri-las mais, ou, eliminar algumas, por desnecessárias.
Por fim, chega o momento em que a rede não consente mais ajustes.
Estendida a todos, aguarda, silenciosa, quem nela quiser prender-se.

Maria Amélia Timóteo
Texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.

20 fevereiro 2013

FÁBULA

A lesma é um caracol sem-abrigo.
O seu corpo nu, sempre exposto à chuva, ao vento, à torreira do sol, é moreno, de tez carregada, bem distinta da tez mais clara do caracol que, detentor de outros recursos, defende melhor os seus interesses.
A concha pode ser selada quando tal se torna necessário, como uma porta que se fecha para maior conforto de quem vive na casa. Os olhos, implantados em corninhos, vêem mais longe e salientam-se ou recolhem-se, verdadeiros periscópios de submarino, emergindo da água na ocasião certa.
Mas também existem muitas semelhanças, de família, entre estes bichos: sem osso nem armadura, qualquer pé os esmaga, na pressa da caminhada, sem intenção, ou com o propósito de os eliminar, pois que ambos são vorazes consumidores de verdura tenra. Nos campos incultos não há quem se importe com o consumo; já nas hortas e jardins, o caso muda de figura. Aí, são mal-amados, sujeitos à ação de químicos que os afastem ( ou matem). Porém, que se saiba, não são espécies em perigo de extinção; mas, lá que têm a vida sempre por um fio, isso não se pode negar.

Predador em toda a linha é o gafanhoto. Robusto, corpo endurecido, pernas de atleta, olhos que descortinam a comida a grande distância e, sobretudo, asas, asas que lhe permitem voar de continente em continente, o gafanhoto não se fica por mesas baixas, isto é, não lhe bastam canteiros de hortas e jardins. Abastece-se onde houver maior fartura e melhor qualidade. Após a sua passagem, toda a vegetação fica como se tivesse ocorrido uma tempestade de granizo, esmordaçada, sem préstimo, sem esperança de ser alimento para outros animais. Nada que cresça firmado numa raiz – vinhas, pomares, olivais – fica a salvo da sua desenfreada gula.

Diz a fábula moderna que, numa bela manhã, se encontraram num pequeno quintal uma lesma, um caracol e um gafanhoto. Ao ver o gigante avançar sobre o limoeiro, a lesma escondeu-se debaixo de uma folha caída e foi procurar, no solo em decomposição, alguns restos de verdura mais ou menos comestíveis. E escondida se manteve enquanto o inseto se banqueteava.
O caracol, junto a um pé de couve galega, roía um rebento novo quando, para seu espanto, o gafanhoto, saltando do limoeiro, pousou na couve e começou a rasgá-la, folha por folha, a tal velocidade que, em menos de nada, só restavam talos, como esqueletos sem carne.
Indignado com a visível falta de sensibilidade do gafanhoto, o caracol interpelou-
-o:
-Senhor Gafanhoto, não vê que comeu em excesso? Eu estava a alimentar-me da couve que o senhor acaba de ripar completamente! Nem uma folha me resta!
Ao ouvir o protesto do caracol, a lesma saiu do esconderijo e avançou um pouco em direção aos outros animais.
O caracol continuou:
- Se o senhor não parar de comer, nós não podemos sobreviver, não podemos aguentar!

Nesse instante o gafanhoto reparou na lesma, quase confundida com a terra, criatura ínfima, desprovida de tudo, sem defesas; contudo, estava viva, a rastejar, a rastejar…
Perante o que vira, e já de partida para o quintal vizinho, o gafanhoto dignou-se, em tom conciliador, responder ao caracol, apontando a lesma:
- O senhor não aguenta? Ai aguenta, aguenta. Pois se até a lesma aguenta!

E, assim, bateu asas e voou, tranquilo, com a absoluta certeza de que os bichos rasteiros não só aguentam como é próprio da sua índole aguentar.

Maria Amélia Timóteo
Texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.



14 janeiro 2013

PAPEL

Ofereceram-me, há alguns anos, um pequeno bloco de papel de arroz que conservo intacto. É um material de cor crua, macio, sedoso, semi-transparente, que deixa ver, a espaços irregulares, as fibras da planta de que foi fabricado. Retiro-o da gaveta com o intuito de nele escrever ou desenhar, mas acabo sempre por desistir, receosa de que, o que quer que produza, lhe diminua a beleza.
Como se percebe, gosto de papéis, de os tocar, avaliando as texturas, de os dobrar e desdobrar, de os enrolar, de os recortar, de neles imprimir pensamentos, formas ou cores.

Vivemos, de há muitos séculos, «embrulhados», por assim dizer, mesmo quando ainda não existia o papel e era em blocos de argila, seca ao sol ou cozida, que os homens gravavam as leis que regulavam a vida em sociedade, os mitos que lhes conferiam a identidade, enquanto povos, a poesia que os diferenciava, enquanto indivíduos.

No Egito antigo, nas margens do Nilo, crescia o papiro, a planta de cujas fibras se teceram as primeiras folhas a que podemos, pela funcionalidade, pela configuração, pela maleabilidade, pela delicadeza, pela facilidade de escrita que consentem, chamar «papel». A biblioteca de Alexandria guardava – guarda ainda – milhares de rolos de papiro, livros e livros sobre os mais variados temas. Com idêntica importância na Antiguidade, a biblioteca de Pérgamo, na Anatólia (Ásia Menor), há muito desaparecida, também encerrava tesouros de literatura, em rolos de papiro que importava do Egito, o fornecedor do produto na bacia mediterrânica. Fosse porque a procura superava a oferta, fosse porque existisse, de alguma forma, rivalidades entre estas bibliotecas, o certo é que Pérgamo deixou de receber do Egito o suporte para os seus registos escritos. Caso dramático, como se pode imaginar. Mas, porque as necessidades aguçam o engenho, eis que surge um novo material, mais resistente, que haveria de ter longevidade bastante para chegar aos nossos dias e ainda ser usado, em situações restritas de afirmação do poder: o pergaminho.

O pergaminho deve o seu nome à cidade onde terá sido inventado, ao que se diz, por um cidadão de nome Hirodicus. A sua origem é animal; trata-se da pele de animais jovens – cabra, cordeiro, camelo, vitelo – que, depois de curtidas e longamente preparadas, em fases sequenciais, ficam aptas para nelas se poder escrever e pintar. Este material, muito caro, por causa da morosa preparação, fez com que os livros fossem um artigo de luxo, só acessível a muito poucos.
Valeram-nos, então, os chineses, povo muito industrioso que inventou, no século I da nossa era, o papel, cozendo, tratando e laminando fibras vegetais e trapos. As técnicas foram sendo melhoradas e simplificadas e o papel produzido na China «viajou» até à Índia onde os árabes o conheceram. As caravanas transportaram-no pelo mundo, então, conhecido. Assim, chegou à Europa. No caso da Península Ibérica, o local de difusão foi a cidade de Fez, em Marrocos, onde se implantaram florescentes manufaturas de papel na Idade Média.

O linho, o algodão, o cânhamo, a folha de bananeira e, mais recentemente, o pinheiro e o eucalipto são as matérias-primas para os diferentes tipos de papel, hoje produzidos de forma industrial, em larga escala.

Muita coisa mudou no mundo; mas, o nome do suporte sobre o qual agora escrevo, não renega a família de onde provém: papiro.

Caro leitor: que papel tem o papel na sua vida?
Não, não pense nisso, nos papéis que a burocracia nos impõe! Esses só complicam e nos complicam com os nervos! Também não me refiro ao papel-moeda, produto rarefeito, que não é chamado à conversa.
Eu queria, apenas, perguntar, se os papéis lhe fazem companhia, que lugar lhes dá, como são as vossas relações…
Por mim, como já adivinhou, não os dispenso.

Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no jornal da S. C. da M. do Cartaxo.

TRONCO DE EUCALIPTO


Refúgio de gnomos