15 novembro 2011

PAI DOS VELHACOS

Abre-se um jornal, liga-se a rádio, a televisão, a internet, e as notícias que nos chegam dão que pensar. Todos os dias nos são ditas palavras inquietantes: empresas que cerram portas, trabalhadores no desemprego, impostos e taxas em alta, diminuição do valor das exportações, metas de bem-estar social que não serão atingidas, redução das ajudas àqueles que delas necessitam para viver, aumento da criminalidade, enfim, relatos de uma situação global em tons de cinzento escuro, à qual ouvimos chamar «crise».

Tal como numa pintura, analisando o quadro, havemos, por força, de encontrar os pontos de luz: um cessar-fogo numa das muitas guerras em curso, uma descoberta científica relevante, um avanço técnico, uma ou outra empresa que se expande, uma individualidade que se destaca numa qualquer área e que poderá servir de farol para quem navega à vista.

Esses pontos de luz são essenciais para que não mergulhemos nas trevas da desesperança. São eles que nos ajudam a caminhar, iluminando objetivos bem definidos e alcançáveis, ainda que os passos sejam miúdos, com paragens, até, para podermos comprovar que marchamos em terreno firme.

Os povos, como os indivíduos, sofrem revezes ao longo da sua história. Portugal tem sofrido vários. As guerras, pestes, fomes, catástrofes naturais, crises políticas, nunca alcançaram, porém, uma dimensão tal que fizessem perigar a identidade nacional. Mesmo o século XVI, o século das índias e dos brasis, foi fértil em infortúnios de vária ordem, incluindo uma certa desagregação do tecido social, com a ascensão rápida de oportunistas que tiveram êxito em empreendimentos à margem do que era consentido, e com o abandono dos campos, na mira de aventuras marinheiras, ou outras, que a maré trouxesse à praia. Lisboa e o Porto aumentaram a sua população à custa de jovens sem ofício nem recursos que chegavam do interior em busca de vida fácil. Eram os «velhacos», designação que hoje achamos pesada, pouco conveniente para se aplicar a gente jovem, mais adequada para homens feitos e vividos. Sem poiso certo, ao acaso, roubavam para comer e, isolados ou em bando, provocavam desacatos e constituíam um perigo para os residentes. Para pôr cobro à situação, foi criado o ofício de «Pai dos Velhacos» nas duas principais cidades, cargo desempenhado por magistrados que tinham como obrigação coibir a vadiagem. Como? Colocando os mariolas em casas abastadas onde ficavam a servir ou em oficinas onde aprendiam um ofício, o que incluía, em ambos os casos, cama e mesa, conforme o uso da época.

O cantor-autor Fausto, no seu álbum «Por este Rio Acima», inclui uma canção – O barco vai de saída – em que se repete, no refrão: «que vida boa era a de Lisboa…». Entendo esse poema como sendo o relato de um «velhaco» que, sem emenda, não teve outro remédio a não ser embarcar numa nau ou numa caravela, rumo ao desconhecido.

Não sei quanto tempo duraram estas medidas, nem sei que resultados alcançaram. Nos sistemas democráticos modernos, elas não podiam, sequer, ser consideradas, pois não se admite o trabalho compulsivo.

Em Portugal, por causa da «crise», faltam os empregos. É uma realidade muito dura, geradora de desalento, quando as estatísticas nos informam que a percentagem do desemprego já ultrapassa os 12%. Porém, trabalho não falta. Todos sabemos que há muito trabalho a fazer e que sempre é possível encontrar uma tarefa adequada para quem tem vontade de a realizar. O problema reside na retribuição, magra que seja, que é devida a quem trabalha, isto é, o dinheirinho, esse «velhaco» que partiu, vadiando, para parte incerta.

Se os leitores souberem onde se acoita esse manhoso, não deixem de informar as autoridades.

Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no jornal da S. C. da M. do Cartaxo.

19 outubro 2011

RELATIVIZAR

Há poucas semanas aconteceu, em Portugal, um acidente numa mina, em consequência do qual um jovem perdeu a vida. Contava dezanove anos, segundo a notícia, e teria negligenciado os cuidados que a situação laboral requeria, ainda segundo a notícia, que dava voz à justificação emitida pela entidade patronal.
Qualquer acidente tem origem em, pelo menos, uma causa; é um «sucesso repentino ou casual» - assim ensina o dicionário – isto é, ocorre sem aviso e atinge, aleatoriamente, vidas e bens, com maior ou menor dano.

Considero muito dura a profissão de mineiro, tanto ou mais arriscada que a de pescador, pois é agravada por não decorrer ao ar livre e por só ter como fundo sonoro o martelar surdo de engenhos mecânicos.
Ser mineiro comporta muitos riscos, no imediato e no futuro, requer maturidade e consciência dos perigos.

Neste nosso tempo em que é aceite que a juventude se prolonga para além dos trinta anos, pergunto-me qual terá sido a motivação que terá levado um rapaz de dezanove anos a trabalhar numa mina. O emprego que estava mais à mão, por necessidade económica ou por tradição familiar? A falta de oportunidades noutra área? A urgência de juntar uns euros para concretizar um sonho, talvez a compra da primeira moto? São suposições, apenas, sem nenhuma relevância; de concreto sabemos que era jovem, trabalhava como mineiro e terá morrido por descuido pessoal.
Os familiares, os amigos, os colegas de trabalho, recordá-lo-ão enquanto a memória for possível. De imediato, passou a constar de uma lista, a das vítimas de acidente, e a contar para a estatística; e ter dezanove anos e ser mineiro, as suas circunstâncias, não entram nas estatísticas.

Outra história se haveria de ouvir contar, na comunicação social, e ficar vastamente documentada, se um qualquer acidente tivesse atingido, mesmo sem desenlace fatal, um futebolista. Todos desejamos que não ocorram acidentes e que, a ocorrerem, não ceifem vidas. Ah, mas um desaire com um futebolista tem consistência, é notícia nacional que justifica longos artigos escritos, parangonas destacadas – passe a redundância - , entrevistas, opiniões de especialistas nos canais radiofónicos e televisivos. Mais: é uma notícia que permanece em alta durante dias, que mantém informada, com pormenor, uma considerável faixa da população, a qual, ao que parece, não se questiona acerca do material que lhe vai sendo servido.

Tenho o maior respeito por todos os trabalhadores que executem bem as tarefas que é suposto fazerem, sejam os profissionais da mineração, sejam os profissionais do futebol. Admiro muito os desportistas que, com dedicação, consagram o seu lazer e horas e horas do seu descanso, à modalidade da sua eleição, sem outra paga a não ser a alegria da competição leal.

Todos têm lugar e valor na sociedade, são elos da mesma cadeia que é necessário manter íntegra. Por isso, não é possível relativizar: cada vida que se perde vale por si, independentemente do valor de cada uma das outras.

Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no jornal interno da S. C. da M. do Cartaxo.

25 setembro 2011

INVENTAR A LUZ

Óleo sobre tela - 2007
Este quadro faz parte da série Asas 


21 setembro 2011

FIO

Fio é uma daquelas palavras pequeninas, muito roladas, que nos chegou diretamente do latim, herança que os romanos deixaram – entre outras – aos povos que submeteram.
A palavra sugere, de imediato, uma imagem de coisa frágil, delicada, prestes a romper-se ao menor incidente. É uma imagem, apenas, pois a partir de um fio, ao qual se juntam muitos outros fios, torcidos em conjunto, se chega a um calabre, isto é, um grosso cabo próprio para a amarração dos barcos, ou para o equilíbrio de um funâmbulo, num número de circo.

Finos, porém muito resistentes, são os fios que as aranhas e os bichos-da-seda produzem, maravilhas da vida animal, as quais, por serem comuns, nem sempre valorizamos.
Com fios de algodão ou de linho se fazem os pavios. De fio a pavio, do essencial – o fio – ao funcional – o pavio – se firma um trajeto que vai da opacidade à luz. O pavio só brilha quando mergulhado e embebido numa qualquer gordura que, enquanto se consome, o consome, até que fique só um morrão quase negro, apenas o vestígio daquilo que já foi claridade.

Este caminho do fio ao pavio faz parte do nosso vocabulário sempre que nos interessa conhecer algo a fundo. Dizemos, então, que vamos «saber», ou «ver», ou «investigar», de fio a pavio, tal ou tal assunto. Partimos com um objetivo: estudar um caso desde as suas raízes mais remotas e avançar, passo a passo, até às últimas consequências, ao morrão, quando do pavio não restar, sequer, um único fio.
É um caminho a que não faltam obstáculos. Há passos que levam a becos sem saída ou a encruzilhadas que apontam em várias direções, de modo que o caminhante hesita, gasta tempo, confunde-se, irrita-se, pode desistir, perdendo, assim, o fio à meada.

Tudo isto vem a propósito dos muitos casos que a comunicação social traz até nós, todos os dias. Alguns são de interesse nacional ou, mesmo, supranacional. Gostaríamos de lhes conhecer os fundamentos, os desenvolvimentos, as conclusões. Gostaríamos…, mas, é escasso o que nos é dado, não passa de um emaranhado de factos (?) soltos, interpretações desencontradas, suspeições nebulosas, às vezes gratuitamente maldosas. Este material informativo (?) não serve para que possamos ir de fio a pavio. Falta-lhe a segurança das raízes e o encadeado dos passos para alcançarmos a conclusão. Talvez, por isso, a maioria de nós, tenha perdido o fôlego para chegar ao fundo das questões, já que esses casos que explodem gritantes e urgentes vão sendo devorados pelo silêncio que se vai instalando ao seu redor, como uma cápsula estanque. O tempo, que corre sem pausas, e esse silêncio acerca do que era, antes, um clamor, enfraquecem-nos a memória.

Diz-se, e com razão, que um povo sem memória é um povo sem história.
Tenhamos coragem, quer individual, quer enquanto povo, para não deixarmos apagar a chama.
Só com o morrão, já não encontraremos o caminho.

Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no jornal interno da S. C. da M. do Cartaxo.

17 agosto 2011

SALTOS ALTOS

A moda, fenómeno sujeito a fluxos e refluxos, vive, naturalmente, da inspiração dos criadores, dos avanços técnicos e da aceitação, mais ou menos empenhada, dos consumidores.
No que toca ao calçado feminino, a moda tem vindo a impor sapatos muito coloridos, decorados com arrojo, trabalhados, muitas vezes, com materiais pouco convencionais.

Se não considerarmos as sabrinas e outros «rasteirinhos» que aparecem todos os verões, sazonais como os figos maduros, os sapatos modernos têm crescido em altura e, de tal maneira têm crescido, que dá gosto apreciá-los nas vitrines ou nas revistas, como objetos de arte que, alguns, de facto, são. Apoiados em plataformas ou em saltos desmesurados, enfeitam-se de tiras, franjas, lâminas, escamas, fivelas, fechos, tachas, botões, flores, transparências, pedraria brilhante, combinam cores e decorações, de modo que visam, em síntese, não deixar indiferente quem os contempla.
«Contemplar» não será a palavra mais comum quando se trata de sapatos. Mais adequado seria tratarmos da funcionalidade e do conforto, ou antes, mais adequado seria perguntarmos se tal calçado corresponde às necessidades de quem o usa. Visto nos pés das modelos, nas «passerelles», tudo parece fluir em harmonia; mas, nas ruas e calçadas das povoações, transpondo passeios, buracos e desníveis, como se comporta? Usa-se «porque sim», porque é moda! Acredito, porém, que no fim de um dia de utilização, as mulheres a quem um par de sapatos acrescentou alguns centímetros à estatura, hão-de sentir um enorme alívio ao descalçá-los.
Não mencionarei, é claro, os males que o uso continuado de saltos altos pode acarretar. Isso fica a cargo dos médicos ortopedistas que sabem, exatamente, quais os danos previsíveis.

Falarei, isso sim, de um certo paralelismo que encontro entre «crescer» à custa de saltos altos e o episódio de Ícaro, o jovem que, segundo a mitologia grega, concebeu e usou umas asas de cera que lhe permitiram voar e elevar-se acima da sua terráquea condição. Atingiu o intento e subiu um pouco, até que o calor do sol lhe derreteu a cera das asas e, em consequência, o fez despenhar-se sobre o mar.
Exemplos da ânsia humana de elevação, a qualquer preço, podemos encontrar vários, em diferentes épocas históricas. Se nos situarmos, apenas, na atualidade e atentarmos nas dificuldades que os países, presentemente, sofrem, será fácil chegarmos à conclusão que «asas de cera» e «saltos altos» podem estar na origem de muitos males, como as quedas a pique e as entorses sociais de que somos testemunhas e parte.

Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no jornal interno da S. C. da M. do Cartaxo.

03 agosto 2011

BODAS

Os longos dias de verão, o bom tempo e também uma moda que, em Portugal, se foi impondo a partir dos anos setenta do século XX, fazem com que estejamos agora em plena época de casamentos. Particularmente nas aldeias de onde saiu um maior número de emigrantes em busca de melhores condições de vida, é no verão que os casamentos se celebram, quando os parentes e amigos, vindos de férias, podem participar da festa. Com o recurso a frigoríficos e ar condicionado, os alimentos mantêm-se frescos e, portanto, o calor não é obstáculo às bodas estivais.

Nas décadas anteriores, os casamentos distribuíam-se ao longo do ano, com exceção da Quaresma e, tanto quanto a memória alcança, eram celebrações mais sóbrias, que exigiam menos tempo de preparação, variando, no entanto, de terra para terra, a forma como se organizavam. Uma coisa, porém, era lei: as noivas não se casavam de vestido de noite, como manda o atual figurino, isto é, usava-se mais tecido da cintura para cima, a cobrir o colo, as costas e os braços, mesmo quando o casamento era civil. Era a «decência» que o impunha, ou a ideia estabelecida de «decência», conceito que pertence, obviamente, à categoria das variáveis históricas.

Os restaurantes com grandes salas para banquetes eram, então, raros. As bodas, nos meios rurais, realizavam-se em casa dos pais da noiva ou em casa de algum parente chegado, frequentemente em adegas decoradas com mantas coloridas, colchas, folhas de palmeira, o chão, de terra batida, coberto com junco. Amigos ou vizinhos emprestavam loiça, talheres e toalhas de mesa, se necessário.

No Ribatejo, a canja de galinha abria o repasto, sendo toda a confeção da refeição da responsabilidade de uma cozinheira, a trabalhar no local. No capítulo das sobremesas, o arroz-doce era rei, mas os coscorões, os rolos e os bolos secos, de ferradura, também não podiam faltar. Depois dos doces, os vinhos finos eram o intróito adequado para os discursos de pais e padrinhos que, em jeito de bênção final, louvavam os merecimentos dos noivos e formulavam votos das maiores felicidades.

Festa sem música, como sabemos, nem chega a ser festa. Por isso, os casamentos atingiam o seu momento alto em bailaricos animados, ao som do acordeon tocando as músicas mais em voga e também as mais tradicionais, dançadas a pares, em roda, ou segundo as coreografias que os mais imaginativos (ou «bebidos») criavam de improviso.

Esse momento para a música, felizmente, não se perdeu e os casamentos dos nossos dias não o dispensam. O acordeon cedeu lugar aos CD’s ou ao órgão elétrico, munido de botões que dão sons de outros instrumentos, a acompanhar. E continua a dançar-se como a cada um aprover, segundo os seus recursos artísticos e a comodidade dos sapatos.

De quando em quando vão-se lançando uns «vivas» aos noivos, afinal a razão de a festa acontecer. Que vivam, pois, os noivos, e que nesse estado de «noivos» permaneçam por toda a vida.
Ergamos as nossas taças, ao saborear o bolo de noiva.

Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no jornal interno da S. C. da M. do Cartaxo.

26 junho 2011

SEM TÍTULO

Óleo sobre tela - 24x30

23 junho 2011

OS BALOIÇOS DA CIDADE

Aos domingos no cacimbo
Floriam os baloiços da cidade.

As crianças e os pais
-tinham todos a mesma idade-
indo e vindo baloiçando
riscavam de corpo aberto
a claridade do meio dia.

Jardim das Barrocas, no Miramar
perto a baía era uma clareira
líquida a cintilar
o solo tecido pelas raízes
dos cascos dos navios ancorados.

Parque Heróis de Chaves
jardim cintado de verdura.
Na pausa serena pelas tardes
recebido o pão de ternura
os cisnes se recolhiam.
Riam os pêndulos em coro
seu cantar afinado com os petizes
corolas em hastes de vento
ritmado balançar.

Na Ilha o parque dos animais
o mais plano e singular
entre a areia e o coqueiral.
Era tempo de partilha
local da lisa simplicidade
a troca linear numa língua comum.
Os bichos e a garotada um riso igual
juntam a terra e o céu
convocam o mar ali ao lado.
É o círculo que se quer fechado
com o alvor da primeira estrela
que venha confirmar
que o dia do Senhor
no tempo do cacimbo
se finda a baloiçar.
Maria Amélia de Vasconcelos

18 junho 2011

MEALHA

De há muito está fora de moda esta palavra.
Tal como o vestuário, os móveis, os utensílios, os costumes, as palavras também têm a sua época alta, quando todos as usam de forma adequada; depois, pouco a pouco, vão decaindo até se encobrirem, por completo, sob a poeira do esquecimento. Só uns poucos documentos, tão antigos quanto elas, ainda as registam. São documentos que fazem as vezes de museus, museus de palavras, testemunhas de um falar já perdido e cuja objetividade nos escapa.

Se recuarmos até ao século XIII, e se fosse fácil (que não é) entendermos bem o vocabulário da época, já para não falar na caligrafia, a palavra «mealha», escrita num documento, não ofereceria qualquer dúvida: tratava-se de uma moedita de cobre, de ínfimo valor, que correspondia a metade de um dinheiro português.

Ora, nesse tempo, circulavam em Portugal muitos tipos de moedas: o morabitino velho, moeda forte, ainda árabe, o morabitino afonsino, o branco (de prata) burgalês, que era castelhano, o soldo, que valia doze dinheiros, além de outras; de todas, a menor em tamanho e em valia, era a mealha.

Terminada a vigência da mealha, ficaram-nos, como seu legado, os traços de família, patentes em palavras como «mealheiro» e «amealhar». Estas duraram e eram palavras robustas, cheias de conteúdo, até há duas ou três décadas, usadas por uma parte considerável da população portuguesa, quando amealhar significava pôr de parte algum dinheiro, fosse para uma aflição, fosse para uma ocasião festiva, de maiores gastos, ou para umas férias, ou para pagar os estudos de um filho; enfim, tratava-se de juntar uma quantia tendo em vista um objetivo, evitando, assim, recorrer a outrem para resolver questões que uma boa previsão poderia acautelar. Neste momento, temo que a palavra «amealhar» possa seguir o caminho da bruma que envolveu a mealha.
Quanto ao mealheiro, o objeto, ainda está à venda por aí, nas quinquilharias das feiras, nas lojas de utilidades. A dúvida está em saber se o mealheiro, nos tempos que correm, tem utilidade. Quem o usa, de facto? Ainda se dão moedas às crianças para guardar no mealheiro? Ainda se lhes explicam as vantagens de atitudes como «poupar», «juntar para»?
São perguntas sem resposta.

Espero, no entanto, que as dificuldades económicas que os povos deste mundo global, que é o nosso, estão a viver, levarão os comunicadores, aqueles que formatam a opinião pública, os que apontam caminhos e prevêem tendências, a recuperar a ideia de poupar, quer a nível das famílias, quer a nível dos estados, umas e outros comparáveis a vasos comunicantes, em tempos de aperto do cinto.
É que, mealha a mealha, se pode encher um mealheiro, valha isso o que valer.
Assim se encontrem mealhas.

Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no jornal interno da S. C. da M. do Cartaxo.

08 maio 2011

HOMENAGEM

O convite veio da família mais chegada, família em que, de certo modo, também nos incluímos, pelos laços do afecto que são aqueles que o tempo ou a distância nunca desatam.

Para uma tarde de sábado estava marcada uma homenagem ao nosso amigo que tínhamos acompanhado, em Fevereiro último, numa outra homenagem, com flores, velas e lágrimas.

A sala pequena foi-se enchendo de rostos sorridentes, à volta das mesas onde pousavam poesias inéditas do homenageado. Quem chegou mais em cima da hora, ou com a hora já passada, foi-se arrumando como pôde, de pé, mas a pé firme.

Voluntária e espontaneamente, foram surgindo os testemunhos. No conjunto, delineavam o retrato de um homem bom, sereno, de bem consigo e com o mundo, atento, porém, aos outros e ao seu meio. Dotado de mãos hábeis, construiu, em madeira, miniaturas de móveis com a minúcia, a funcionalidade e a arte que se requerem nos móveis a sério, nos que se guardam nos museus e são património de valia. Essas peças, expostas na sala, receberam os mais elogiosos comentários.
Seguindo-se a cada testemunho, escutou-se a leitura, também espontânea, de alguns dos poemas, de entre os inéditos que estavam disponíveis, ou dos que se iam escolhendo do livro que, em vida do poeta, foi publicado.

A poesia, gravada na sua alma, moldou-lhe a identidade e ficou patente na sua forma de ser e de estar: harmonia, singeleza, transparência e uma absoluta honestidade. Nunca buscou fama nem reconhecimento. Uma boa parte dos seus conterrâneos desconhecia, até, que escrevia e só quando o seu livro viu a luz do dia o soube. Alguns amigos ouviram-lhe, de viva voz, as rimas; outros, mais próximos, admiraram os cadernos nos quais, com uma caligrafia belíssima - arte, também -, guardava, passados a limpo, os poemas.

Nos tempos mais difíceis, afligido por males que a ciência já não podia minorar, os seus «papéis» mantinham-se sempre ao alcance da mão. Julgo que sejam dessa época os versos que se seguem: «Já nada me serve sonhar…/ Nada posso aproveitar/ dos sonhos que hoje tiver.». É visível a consciência de um limite, de um momento que se aproxima. Contudo, as palavras não ficam por registar, são como que uma respiração que ocorre porque, na sua essência, são vida.

Amou a vida e soube vivê-la de acordo com os seus princípios e com o seu sentir.
Partiu com a mesma suavidade com que marcou aqueles que tiveram oportunidade de o conhecer e que, por isso, lhe estão, para sempre, agradecidos.

Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no jornal interno da S.C.da M.do Cartaxo.

07 abril 2011

MEMÓRIA

- Conheces?
- Não. É linda!
- Quem seria?
- Uma amiga da avó, talvez. Nunca te falou dela?
- A mim?! Eu era uma criança quando a avó faleceu.
A fotografia, a preto e branco, todas as gradações intermédias de cinzento, entre sombra e luz, moldando as formas, foi passando das mãos de uma para as mãos da outra.
Permanecia íntegra, sem amarelecimentos, sem vestígios de humidade, dentro de um envelope rígido, esse, sim, acusando a usura do tempo. O selo branco de um fotógrafo londrino marcava o cartão da capa no canto inferior direito. Folheando, seguia-se o papel translúcido, com finas aranhas em relevo, a proteger o rosto oval e o colo de uma mulher adulta, jovem ainda, uns olhos líquidos, penetrantes, e um quase sorriso, um jeitinho na boca de quem pronunciaria uma palavra se o flash não tivesse disparado antes.
- É obra de um artista. Repara nos ornamentos do contorno, como que uma moldura…
- E o tule bordado da blusa, ou vestido? Que delicadeza nos pormenores!
Na base, sobre o diluído pregueado da roupa, a dedicatória: «To my dear friend, Mrs. …». Pouco mais conseguiram decifrar. Aquela caligrafia alta, inclinada, com hiatos entre cada letra, era críptica. O nome da avó não oferecia dúvidas. Àcerca da assinatura, em letra mais miúda, tal como a última das cinco linhas, não estiveram de acordo. A inicial caprichosa do nome próprio podia ser um «E», um «L», ou um «F»…
- Ficas tu com a fotografia?
- Porquê eu? Fica tu. Podes emoldurá-la, até.
- Sim? E diria que era quem? Uma tia?
- Não tens de explicar nada. Podes dizer, simplesmente, a verdade: que era uma amiga da avó, uma senhora inglesa.
Durante semanas, a foto foi ficando sobre a cómoda onde fora encontrada, enquanto a casa ia ficando vazia.
Quando chegou a vez da cómoda ser retirada, a fotografia foi transferida para o peitoril da janela, e de novo admirada e discutido o destino a dar-lhe. Não representando nenhum familiar, nem os de sangue, nem os dos afectos, não fazia sentido guardá-la.
Incomodava, a ambas, deitar fora uma imagem tão bela. Sim, mas primeiro teria de ser destruída. Um rasgão, a meio; depois outro, outros, até restarem só pedacinhos que, a esmo, foram lançados no saco dos papéis para reciclar.
De quando em quando, o enigma da senhora inglesa vinha à conversa. Originou, até, uma espécie de aforismo familiar:
«- Olha? Isso é como a fotografia da inglesa: ninguém sabe, ao certo…».

Porém, como nada se perde, em qualquer parte do mundo, alguém terá escrito, ou há-de escrever, um poema, uma mensagem banal, uma carta definitiva, um relatório, um mapa de tesouraria, um atestado, nas fibras que fixaram, nos anos vinte do século vinte , a imagem de uma belíssima mulher.
Definitivamente, só existimos, no futuro, enquanto alguém guardar a nossa memória.
Depois, havemos de ser, algures, outra coisa qualquer.

Maria Amélia de Vasconcelos
Publicado no jornal interno da S. C. da M. do Cartaxo. 

08 março 2011

CARNAVAL

O calendário marca, na roda do ano, as épocas próprias para as diferentes festas. Cumprindo o estabelecido, foi a vez do Carnaval, ou Entrudo, festa móvel que, neste ano, «caiu» em Março. Em rigor, o Carnaval não se reduz a um dia especial; é, antes, uma época, relativamente alargada, que se estende desde o dia de S. Vicente – 22 de Janeiro – até Terça-feira Gorda, o último dos três dias «gordos» que incluem a segunda-feira e o domingo anteriores.

As origens do Carnaval são remotas e, como quase sempre acontece com as tradições que perduram, assentam em crenças religiosas que, de uma forma ou de outra, se relacionam com os ciclos da Natureza.
Os romanos, herdeiros e divulgadores de muitos cultos religiosos, que assimilaram com a mesma avidez com que submeteram, militarmente, os mais diversos povos, reabilitaram o arcaico deus grego Cronos – o Tempo – sob a denominação de Saturno. Cronos detinha a foice mágica que cortava o tempo velho (o inverno) para permitir a entrada do tempo novo – a primavera. Nos territórios do império romano, o culto de Saturno (Cronos) foi amplamente difundido. No inverno, entre os finais de Dezembro e Fevereiro, nos bosques, realizavam-se festas noturnas – as saturnálias – em que, ao redor de fogueiras, homens e mulheres se entregavam a danças rituais, vestidos de branco, roupagem da deusa egípcia Hathor, deusa lunar, interveniente na passagem das almas da vida terrena para vida eterna, também ela adotada pelos romanos, e com lugar no panteão. Estas festas, transversais a todas as classes, incluíam o consumo excessivo de comidas e bebidas, o que levava a uma desmesura nos costumes que não era tolerada em qualquer outra época do ano. À ideia de renovação andavam associadas lendas e superstições: era necessário deitar fora o que era velho e receber, de Saturno, aquilo que era novo, o vigor que só os deuses podiam transmitir aos homens. Imbuídos do novo, os povos participavam da energia cósmica que era patente no despontar das árvores e no desabrochar das primeiras flores. Em linguagem coloquial dos nossos dias, diríamos que os povos «carregavam baterias».

Com o estabelecimento do cristianismo, no século IV, a Igreja procurou que as celebrações das saturnálias se conformassem, tanto quanto possível, com os preceitos doutrinais. Nos diferentes estados que se formaram após a queda do império romano, as festas foram ficando confinadas a um período de tempo mais restrito, mudando-se o seu nome para «Carnaval», e foram sujeitas a leis que visavam moderar o desregramento e a violência.
No período do Renascimento, em Itália, o Carnaval era pretexto para festas sumptuosas. Os grandes senhores, servidos por artistas talentosos, disputavam a glória de serem recordados por promoverem os divertimentos mais criativos. A coberto das máscaras, recuperadas do antigo teatro grego, e das pequenas mascarilhas, mais cómodas de usar, os foliões noturnos davam livre curso aos seus intentos. Durante o dia, realizavam-se desfiles subordinados a um tema, como acontece, presentemente, no Carnaval do Rio de Janeiro, o mais popular à escala mundial graças aos meios de comunicação global.

Carnaval é uma palavra francesa usada em quase todas as línguas e derivada de «carnelavare» que, no dialecto da Toscânia ( norte de Itália) significa «levar» ou «retirar» a carne. Como se entende, a palavra indica a chegada da Quaresma e a consequente obrigação do jejum. O termo «Entrudo», só usado na Península Ibérica», advém diretamente do latim «introitu» que significa «entrada», a entrada da Quaresma, período de purificação que se inicia na quarta-feira de cinzas.

Em Portugal, uma disposição régia de 1542, determinava que não se realizassem os trabalhos da chancelaria até quinta-feira, o que indica que, depois dos folguedos, a quarta-feira de cinzas era dia assinalado, não sabemos se por ser o primeiro da Quaresma se por ser necessário descansar.
A tradição de um Carnaval agressivo, que não poupava ninguém, foi-se diluindo com o passar dos tempos, mercê, também, de leis, como a de 1817, que proibia as brutalidades da quadra.

O Carnaval continua vivo, por esse mundo fora. Brincar faz bem ao corpo e à mente, com conta, peso e medida, como é uso dizer-se, ou não vivêssemos numa sociedade organizada, pronta para punir todos os carnavais excessivos e, por maioria de razão, todos os carnavais fora de época.

Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no Boletim Informativo da S. C. da M. do Cartaxo.

04 março 2011

LÍAMOS POEMAS

Líamos poemas ao entardecer
ou no calor
das noites acesas.

O gravador de fita
uma a uma repetia
as palavras presas
e devolvia
quase exacta
a cor da nossa emoção.

A inspiração dos poetas
soltava nossa voz original
oculta e pura
cristal da rocha
por lapidar.

Líamos poemas ao entardecer
A tactear a harmonia
De olhos acesos acesos acesos.

Maria Amélia de Vasconcelos

08 fevereiro 2011

DIA DE...

Vivemos sujeitos, em simultâneo, às dimensões que mais condicionam a vida humana: o espaço e o tempo. Uma e outra podem medir-se, de acordo com escalas convencionais que, alterando-se com o evoluir das civilizações, são, salvo raras exceções, universalmente aceites. Podemos, assim, utilizar palavras como «ano», «mês», «dia», «hora», no que concerne ao tempo, pois estes conceitos são compreensíveis pela maior parte dos povos. Do mesmo modo, a dimensão «espaço» também é entendível, usando o vocabulário específico para as distâncias, os acidentes geográficos, a rosa-dos-ventos, mais a latitude, a longitude, a altitude. Com estes dados nos vamos situando, ao cimo da Terra, usando as palavras que indicam o tempo em que algo ocorreu e as que referem o lugar onde tal acontecimento se deu.

Os povos, necessitando de preservar a memória coletiva, foram registando os acontecimentos mais marcantes das suas vivências. A História, enquanto ciência, e usando os métodos que lhe são próprios, «arruma» essas etapas e estabelece-lhes enquadramentos coerentes.

Para ajudar a manter vivas as lembranças relevantes para a sua coesão, os povos sentiram necessidade de criar os seus «dias nacionais», feriados civis, quando são lembrados os heróis fundadores, as datas dos tratados que criaram os países ou definiram as fronteiras, os artistas, os cientistas, em resumo, destacar os dias em que se pretende estreitar mais os laços em torno da ideia, um tanto ou quanto abstrata, de pátria .Pela mesma razão – estreitar os laços – celebram-se os dias santos que, marcadamente religiosos, interagem, também, com a vida civil, na medida em que influenciam o decurso do quotidiano: comércio encerrado, menos transportes públicos, festejos locais, enfim, as alterações próprias dos dias especiais. Em Portugal, no ano corrente, entre feriados civis e dias santos, teremos, salvo erro, umas catorze datas a assinalar.

Desde há umas décadas, têm sido criados, um pouco por todo o mundo, os «dias de…», às vezes com o intuito de homenagear ou por em relevo uma causa, ou uma categoria de pessoas ( criança, idoso, mulher…), a que nem sempre é alheio o intuito do ganho comercial.. Estes «dias de…» podem ser nacionais, europeus, internacionais ou mundiais, conforme se assinalam em espaços geográficos cada vez mais abrangentes.

Tenho aberta, na minha frente, uma agenda para 2011 e verifico que, por exemplo, em Novembro, o dia 15 evoca a Linguagem Gestual Portuguesa, e o dia 21 celebra o Dia Internacional da Saudação. Não vem mal ao mundo por nos fazerem lembrar a importância da linguagem gestual. E é bom não esquecer, também, que o mínimo que podemos fazer, é saudarmo-nos uns aos outros, prática, aliás, a cair em desuso, mas que não deveríamos deixar cair, pelo menos quando entramos ou saímos de um local onde se encontra alguém, conhecido ou não. Saudar, com a voz ou o gesto, é «salvar», «dar a salvação», desejar o bem-estar, a saúde ao nosso semelhante. Mas, pergunto-me se andaremos tão distraídos com o que se passa, que tenha de se criar «um dia» que nos assinale aquilo que deveria fazer parte da nossa mais elementar memória.

No mês de Maio, os «dias de…» são, ao todo, 16! Destes, três têm mais do que uma causa a destacar. O dia 31 evoca o Pescador, e só temos que aplaudir, agradecidos, todos os dias, quem exerce uma profissão tão dura e perigosa. O mesmo dia, é «Dia Mundial sem Fumo», o que me confunde um pouco, pois não alcanço o seu exato significado. Não lançar mais fumo para a atmosfera, já tão saturada e enferma? Excelente razão! Impedir que se faça a fogueirita fumarenta onde se hão-de assar as primeiras sardinhas da época quente? Não lançar foguetes? Não acender velas votivas? Dar descanso aos bombeiros que, a 28 do mesmo mês, têm o seu «dia mundial»? Repito: este «dia sem fumo» vai além do meu entendimento. Talvez mereça, mesmo, uma refleção séria, ponderando todas as razões para não haver fumo, as quais serão, naturalmente, muitas. Ocorre-me agora que – quem sabe? – possa ser o dia em que os sinais de fumo, linguagem antiquíssima, estarão, de todo, proibidos…

Em todo o caso, hei-de estar atenta à data para não destoar das boas intenções com que, mundialmente, foi criado este «dia de…».

Maria Amélia de Vasconcelos

Texto publicado no jornal interno da S.C.da M.do Cartaxo.

01 fevereiro 2011

AS UNHAS DO TEMPO

As unhas do tempo
não se desgastam

Riscam sem descanso
nos umbrais das madrugadas
as pedras os musgos
a corrente dos rios
e tecem os fios tensos
que ajustam
os gravetos dos ninhos
cunhais das moradas
e marcam as aladas viagens
das sementes.

As unhas do tempo
no exacto tempo em que escrevo
escavam imparáveis
reconhecíveis sinais
de permanente mudança
das cores vivas ao desmaio
até ao denso cinzento
das estátuas.

Num momento
nós e as coisas
mesmo a rosa a rosa
de pele de espuma
dilacerados
apartados do ser e do sentir

imprestáveis coisa nenhuma
sem contorno ou dimensão
cortina a dividir
os astros de outros astros
átomos em suspensão a pairar
escassamente duráveis
segundo a humana compreensão
somos a presa das unhas do tempo
seu perene sustento
o alimento
da poeira estelar.

Maria Amélia de Vasconcelos

02 janeiro 2011

GANHAR OU PERDER

Duas faces têm as moedas – cara e coroa – como as designamos.

As palavras escolhidas para título desta reflexão são, cada uma, cara e coroa de si mesmas, conforme o sentido em que as usamos.

Ora comecemos com «ganhar», que pode ter uma carga positiva ou negativa. Ganha-se a coragem, a confiança, o afecto, o conhecimento, a experiência; ganham-se os bens materiais, ganha-se a vida, ganha-se o dia quando algo corre conforme o nosso desejo, ganha-se tempo, até o tempo, a mais escorregadia das medidas que o homem crê dominar…Ganhar! Mas também ganhamos manias, suspeições, indiferença, vícios, inimigos, raiva, às vezes um capital de raiva tão milionário que temos de o aliviar descarregando-o como podemos (quase sempre como não devemos!) e, assim, «desperdiçamos» esse ganho negativo que fomos acumulando.

Perder, também pode ter um significado de coisa valiosa: perder o medo, perder certos hábitos e paixões, perder peso, quando o espelho e a balança, aliados a nosso favor, nos dão um sinal de alerta. A lista de perdas de cariz negativo é quase infindável. Podemos começar pelo tempo que, bem sabemos, não nos pertence, mas que sempre clamamos porque o perdemos. E perdemos, no jogo da vida, parentes, amigos, referências, a saúde, às vezes as estribeiras e, com elas, a razão. Estas são perdas de vulto. Mas «perder» é verbo quotidiano, sempre a jeito, usado a torto e a direito, sem discernirmos, a fundo, se, quando dizemos «perdi», não seria mais justo dizermos «ganhei».

Não esvaziámos, nem esse era o objectivo, o sentido de ganhar e de perder. Há tantas outras formas de abordar o significado destes dois verbos, que nos parecem pólos opostos, mas que mais não são que um só conceito, quando entendidos de trás para a frente e da frente para trás, isto é, quando volteamos a moeda…

Acabámos de perder (ou ganhar?) um ano velho, com as suas vicissitudes, as próprias de todos os anos, com dias luminosos, outros de bruma.
Acabámos de ganhar um tempo novo, mais uma sucessão de dias que colocamos num calendário circular e que se fechará num outro dia de São Silvestre.
Chamamos-lhe, agora, Ano Novo. Com ele reafirmamos a esperança de entendermos melhor quando ganhamos, mesmo que os dias escuros nos queiram convencer de que perdemos.

Maria Amélia Vasconcelos
Texto publicado no jornal interno da S.C.da M.do Cartaxo.