25 dezembro 2014

NATAL PEQUENINO

Em meados do século passado, na noite de 24 de Dezembro, havia sapatinhos postos nas chaminés, infelizmente nem em todos os lares portugueses; talvez, na maioria, quero crer, embora que de tal prática, tão poética e carinhosa,  não possa haver estatísticas.

Qualquer sapatinho ou bota servia para recolher as prendas que o Menino Jesus deixaria, como presente de Natal, às crianças que se tinham «portado bem», às que «mereciam» o desvelo do Menino na noite mágica em que Deus se fez homem.

A menina, única criança da casa, queria ficar acordada até tarde, adivinhar os movimentos e os ruídos, surpreender o momento exato em que o Menino deixaria cair, como chuva silenciosa, os embrulhos que lhe destinara. Fazia birra para ir para a cama e, já entre lençois, ouvidos alerta, batalhava com o sono, bravamente, até à derrota final. Às vezes imaginava barulhos e visões e até chegou a afirmar, com convicção, ter avistado um pezinho rosado do Menino Jesus a elevar-se, chaminé acima.

Menina dorminhoca, de seu natural, tornava-se madrugadora no dia de Natal para correr à cozinha, descalça e mal agasalhada, a abraçar os presentes. A alguns conhecia-os pelo toque, ainda que disfarçados pelo papel festivo. Meias, camisolas, luvas, cachecol eram presentes presentes, isto é, costumavam aparecer, o que não admirava, sendo Inverno. Outros, os primeiros a serem desembrulhados, eram menos previsíveis: livros, quando as letras não passavam de uma emaranhada mancha sem nexo, mosquitos parados que só picavam a curiosidade, bolas de borracha, uma certa carroça de lata puxada por um cavalo cinzento, servicinhos de chá, de plástico, outros brinquedos, como um marco do correio de madeira, igualzinho ao que, na vila, alegrava o largo e, muito longe, esbatido na memória, um coelhinho branco, de olhos vermelhos, de vidro, bom para abraçar e fazer companhia, bom ouvinte, com as suas orelhas esticadas. Teve o seu fim, já pardo na cor e rebentado nas costuras, quando a amiga, sabe-se lá por que urgências, o deixou esquecido no quintal, à tardinha, véspera de uma noite de muita água.

De posse dos seus tesouros, ufana, a menina precisava de mostrá-los aos amigos. Os primeiros a visitar eram os meninos da casa ao lado da sua, com o fito, também, de saber das novidades que o Menino teria por lá deixado na sua passagem.

Num desses natais, os meninos, recostados nas suas camas, abertas as prendas, exibiam, cada um, sua guitarra, instrumentos de pouco mais do que um palmo, madeira pintada e cordas de arame. Como a música é o ponto alto de todos os convívios, os rapazitos tocaram e a garota foi cantando uma qualquer canção mal aprendida na rádio, um concerto tão improvisado quanto, certamente, desafinado que trouxe, até à porta do quarto, a mãe, banhada de risos.

Nestes nossos dias, o bondoso São Nicolau, que dá pelo nome de Pai Natal em muitos países, garrido na sua roupa quente, figurino inventado no pós-guerra, viaja por todo o mundo, recebe cartas com pedidos que se esforça por satisfazer, com ou sem sacrifícios. Agora, como então, os corações pequeninos batem mais forte no Natal, olhos que são estrelas acesas, contando os dias que faltam, impacientes e esperançosos.

É Natal! Boas Festas. E, ainda e sempre, os votos: que o Menino Jesus vele pelo mundo e aqueça com o seu sorriso todos, os meninos, em particular os que não têm qualquer presente para desembrulhar.

Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no jornal da  S. C. M. do Cartaxo.

21 dezembro 2014

TEMPO

Não há quem não fale dele, do tempo, entenda-se. Ou, melhor: não há quem não se refira aos diversos tempos, os meteorológicos e os outros, mais difusos e mais difíceis de explicar por palavras, os instantes que, somados e quantificados, formam unidades a que chamamos minutos, horas, dias…Há, também, o tempo em sentido mais lato, quando queremos significar uma época, um decurso alargado, quer seja do passado ou do futuro. É ou não certo que todos nós nos interrogamos sobre o que nos reservarão os tempos que hão-de vir?

Falar do tempo – o meteorológico – é comum. Serve de «motor de arranque» para uma conversa social, sem intimidade, e também dá jeito para preencher os hiatos quando já há pouco a dizer. Então, o que se pretenderia um diálogo pode reduzir-se a um monólogo surdo; e roda o disco: «é porque o verão foi frescote em demasia, o mês de Outubro quente como não há memória, mais a chuva, o vento, a geada…Ah, pois! E a agricultura é que sofreu…». Queixamo-nos do tempo, a causa do mau ano agrícola, mesmo quando aquilo a que chamamos «a nossa agricultura» se resuma a um vasinho de salsa débil na marquise.

O tempo do relógio e o do calendário – construções humanas – faz o seu caminho há milénios, a partir da observação dos astros. É uma aquisição coletiva de vários povos, de aperfeiçoamento em aperfeiçoamento, até à atualidade; e, a crer nas notícias que nos chegam pelos meios de comunicação, os estudos prosseguem, pelo que, mais década, menos década, podem ser necessários ajustes e o mundo pode passar a girar num outro compasso, no que toca a horários e calendários.

O outro tempo, o tempo histórico, deixou as suas marcas, umas mais evidentes, outras mais nebulosas. É possível descortinar o modo de vida de comunidades que existiram muito antes de nós, como sabemos. Esse trabalho de fazer falar o passado continua a ser o objetivo das ciências sociais que vão acrescentando documentos e fundadas opiniões para que melhor possamos compreender quem somos e de onde viemos.

Mas há, ainda, outro tempo, um tempo único, individual, pertença de cada pessoa, e ao qual chamarei tempo-memória. Este tempo não é balizável, não é mensurável, nem, sequer, é comprovável. Trata-se de um tempo difuso, sem contornos marcados, exceto para nós, que permite as fantasias, os mitos, as falsas recordações, a sensação de se saber, a fundo, aquilo que, factualmente, se desconhece. A infância e a juventude olham os acontecimentos  e os objetos de forma diversa da dos adultos. Parece-lhes grande e importante o que, eventualmente, é mediano. Apropriam-se dessas imagens e, com elas, tecem «um tempo», só deles, e um sentir de pertença absoluta. E, até à idade maior, enquanto o entendimento o consentir, tal ou tal acontecimento, será recordado com as dimensões, as cores, as formas, os cheiros, os sabores «daquele certo dia» em que, encontrando-se num local, desenhou no seu espírito uma imagem.

Se cada um fizer o simples exercício de regressar à sua infância, o mais que aí irá encontrar são imagens desse tempo-memória, nítidas como a asa de uma borboleta na lamela de um microscópio. E não adianta que nos digam, os que tenham estado presentes, mesmo ao nosso lado, que nos enganámos na estação do ano, nas cores do quadro, no discurso das personagens. O que gravámos em nós foi mais do que um acontecimento, num certo lugar, num certo dia. O que gravámos foi matéria para a formação do nosso espírito, foi substância para o crescimento.

Por esta razão, há um tempo individual, o tempo-memória que, não só é único, como não consente verdadeira partilha.

Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no jornal da S. C. da M. do Cartaxo

17 outubro 2014

ALVANEL

Ensinaram-nos na escola que as palavras começadas por «al» derivam do árabe. É o caso da palavra que escolhi para título deste escrito.

A língua portuguesa formada, na sua maior parte, com base no latim, recebeu – e continua a receber – muitos contributos de outras línguas com as quais esteve, e está, em contacto. Esse aumento vocabular faz com que o português seja uma língua muito rica e diversificada, com variantes locais para uma mesma palavra ou, até, palavras diferentes para designar um mesmo objecto, dependendo da proveniência dos falantes.

Logo a seguir ao latim em termos de importância no nosso falar, vem o árabe, sem tirar, é claro, o valor e o lugar ao grego que nos legou, entre outros, os termos usados, sobretudo, nas ciências.

Mas são as palavras árabes que hoje irão «rolar». Para começo, apresenta-se uma muito distante da tal regra que aprendemos, pois até nem começa por «al».

Trata-se de «divã», aquela cama estreita, encostada à parede, antepassada do sofá-cama.

Em árabe, «divã» significava na Turquia e na Península Ibérica, o conselho de ministros do sultão, passando, depois, a designar a sala onde esse conselho se reunia. Como se chegou ao significado actual? Sobre esse caminho não tenho certezas. São, assim, as palavras: vivas, buliçosas, irrequietas. Elas renovam-se, mascaram-se, reinventam-se. Vivem novas vidas, conforme se mudam os tempos.

Alvanel, que também era dito «avenel, alvaner, alvanir e alvaréu» não se adaptou a modas e, simplesmente, desapareceu do nosso convívio pelo que é, no geral, ignorada. Quem não aparece, esquece, verdade? No Alentejo sobreviveu até finais do século XIX, conforme se pode comprovar pelos registos paroquiais. No resto do país já não se usava desde o século XVII, sendo substituído por pedreiro. Um alvanel é, afinal, um pedreiro.

O nome antigo vem do árabe e significa «aquele que constrói». A palavra deixou um leve traço da sua presença em «alvenaria» que se usa (pouco, é certo) quando se trata de uma construção robusta, de paredes grossas, feitas de pedras ligadas com uma argamassa (cal, areia e água). Daí a expressão popular «estar de pedra e cal», significando ser resistente, não oscilar, perdurar no tempo e no espaço.

O alvanel exerceu o seu ofício antes da tecnologia ter avançado com o cimento, as armações de ferro e as cofragens que são métodos construtivos dos nossos dias. Foi ele o construtor de igrejas e catedrais, palácios, pontes, aquedutos, moinhos…; deixou obras que ainda estão patentes aos nossos olhos.

Ao seu lado trabalhavam outros profissionais com o mesmo material: a pedra.

Eram eles os mestres da pedra talhada, os que a cortavam em blocos regulares e que também preparavam as molduras de portas, janelas e rosáceas; e os escultores, chamados «mestres de pedraria». Era do seu encargo esculpir os motivos simbólicos e decorativos que admiramos nas construções mais elaboradas.

Nesta grande empresa de erigir maravilhas de técnica e arte, os homens que, conforme a sua especialização, trabalhavam a pedra, eram apoiados por outros profissionais que executavam um trabalho quase escondido, porém indispensável: os carpinteiros. Todos já vimos a armação de um telhado, em madeira. São traves, barrotes, pendurais, formando uma teia segura e bela.

Transpondo estas obras mais comuns para os pináculos das mais altas catedrais, lembrarei que eles se mantêm, desde há séculos, sustentados por complicadas armações de madeira, restauradas quando necessário. Sem estas armações permanentes não veríamos campanários e agulhas apontando os céus, desafiadoramente.

Pedreiros e carpinteiros, desde o tempo das confrarias de ofícios, têm um patrono comum: São José. Nas procissões religiosas, o lugar que ocupavam estes profissionais era destacado, como reconhecimento do valor do seu trabalho.

Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.

12 outubro 2014

In tensão

TOPONÍMIA

Um objecto e o nome pelo qual o mesmo é conhecido partem de necessidades diversas, porém inseparáveis. O nome surge depois, para definir o objecto, no seio do universo de falantes da mesma língua; acrescentar-lhe o que seja, pode torná-lo um pleonasmo, por vezes anedótico.

O nome atribuído a um local forma-se, frequentemente, a partir das condições naturais desse mesmo local, quer se trate de um monte, de um vale ou cova, de um rio ou riacho, de uma floresta ou de uma árvore. Na nossa língua, muitas localidades devem  a sua designação à respectiva situação geográfica, o lugar onde, por comodidade ou por defesa contra inimigos, se agregou o primitivo núcleo populacional. Também é comum encontrarmos, em Portugal, povoações cujos nomes radicam em equipamentos atribuídos a habitantes mais remotos. É o caso de designações como: ponte, moinho, castelo, torre, porto, vila, e tantos outros.

No traçado interno das povoações – ruas, travessas, becos, escadas – a necessidade de marcar com um nome o sítio de residência, ou de um qualquer prédio, é evidente. O mais comum, modernamente, é dar a esses elos da malha urbana nomes de personalidades relevantes, nomes de outros países ou das suas capitais ou datas importantes na História nacional ou local.

É um estudo interessante verificarmos, numa povoação, a permanência ou a alteração da toponímia, num determinado período.

Nos assentos paroquiais do Cartaxo do último quartel do século XIX – consultados em razão de outras pesquisas – encontrei nomes de arruamentos que ainda se mantêm. O adro da igreja paroquial, em 1877, era, indiferentemente, designado por «adro» ou por «praça de São João Batista», hoje Largo de São João Batista. É abundante a alusão à rua de São Sebastião, à Ribeira (já não «Cartaxinho»), ao Valverde – território extenso onde havia vinhas e olivais - , ao Gil, ao Algar, à Boavista, à rua Velha, entre outros locais que ainda são conhecidos pelos nomes, a par de outros, os oficiais. No espaço alargado do Valverde, cortado por várias artérias, houve que encontrar uma toponímia que as identificasse nos nossos tempos.

Pela análise dos assentos paroquiais, descobrimos algumas das atuais ruas, agora «rebatizadas», cujos antigos nomes alguns ainda recordarão. Como exemplos, vejamos os que se seguem: rua do Carril / rua Serpa Pinto; rua d’Além / rua José Ribeiro da Costa; rua Direita / rua Mouzinho de Albuquerque; rua do Jogo de Baixo / rua Dr. Júlio Montez; rua dos Casais / rua 5 de Outubro; rua da Carreira / rua Batalhoz. Também há referências à Praça Nova que, presumo, será a atual Praça 15 de Dezembro, a qual todos os cartaxenses conhecem como «Largo da Praça» ou, simplesmente, «Largo».

Entre os nomes que não mudaram nestes quase cento e cinquenta anos, destaco a travessa do Nogueira, a travessa do Gil, a rua (?) das Palhoças e a rua (?) do Cardador, para além da já citada rua de São Sebastião, onde existiu a capela de estilo manuelino, de evocação deste Santo protetor dos leprosos, na saída do Cartaxo em direção de Santarém.

Não me é possível localizar, no atual traçado urbano do Cartaxo, o casal do Barbosa nem o casal da «Gocharia». O mesmo se passa com a travessa dos Sapos e…imagine-se, a rua das Malucas! Em tais sítios, de nomes tão pouco apresentáveis, nasceram, tiveram morada ou faleceram, em tempos não muito recuados, cidadãos cartaxenses.

Quando, com a República, foi criado o Registo Civil, não custa a crer que esses cidadãos sentissem algum incómodo ao terem de declarar a morada.

Ou porque a toponímia mudou, ou porque se destruíram caminhos para dar lugar a ruas, o certo é que, que me conste, tais denominações desapareceram. Quem delas, hoje, se lembrará? Contudo, são História e, como tal, vo-las entrego.
Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.

27 setembro 2014

Coração, não te detenhas

GADO DO VENTO

Quando as hostes romanas, de conquista bélica em conquista bélica, ou por via de ocupações mais ou menos pacíficas, em alguns territórios, chegaram à Ibéria, já muito mundo haviam visto e poucas coisas, quer da natureza, quer dos costumes das gentes, as espantariam. 
Vieram encontrar tribos dispersas ocupando diminutos territórios, vivendo do que a terra dava, caçando, lutando, por vezes, umas contra as outras, sem organização política digna desse nome, num estádio civilizacional primitivo, bem diferente daquele que florescia na Península Itálica e nos espaços mediterrânicos, em geral, fundados sobre a cultura dos gregos, essas sementes que não deixaram estiolar, como se comprova pelas urbes que fundaram e pela dinâmica comercial.

Onde chegavam, pelejando ou parlamentando, havia algo que os romanos sempre cumpriam: registavam, por escrito, os factos mais relevantes que ocorriam, os nomes gentílicos, as crenças, as liturgias, os acidentes geográficos, os factores do clima. Escreveram, assim, os rudimentos da História, da Geografia, do Direito, da Antropologia, da Teologia, da Linguística…, em suma, usando os meios próprios do seu tempo e da sua mentalidade, gravaram a memória futura. Nunca seremos suficientemente gratos aos povos que, sedimento sobre sedimento, camada após camada, foram cimentando o que hoje – impropriamente – chamamos «civilização ocidental».

Os romanos entraram na Península Ibérica, pela primeira vez, nos finais do século III a.C. ,vin-dos do norte de África, após umas tréguas com os cartagineses. A sua instalação no sul medi-terrânico e atlântico da Ibéria foi a estratégia escolhida para evitar que os africanos aí reco-lhessem víveres e homens para a guerra

Na Ibéria, segundo os relatos dos letrados, depararam-se com tal quantidade e tão excelente qualidade de gado equino que logo inferiram que só uma disposição divina providenciaria tal bênção.
Bóreas, um deus menor, consubstanciado no vento norte, promovia a fertilização das éguas que virassem os quartos traseiros na sua direção, durante a noite. Então, Zéfiro, o vento suave, a aragem, aproximava-se e tocava as fêmeas, de modo que as crias nascidas dessa união reunissem, em si, as melhores características da raça: beleza, nobreza, força, velocidade e obediência ao homem. A esses animais, assim nascidos de forma sobrenatural, davam o nome de «gado do vento».
A expressão fixou-se e veio a fazer parte do léxico português, alargando o seu significado, não só aos equídeos, mas a outros animais, apagado já, de há muito, o mito da memória coletiva. Gado do vento podia ser uma ovelha, um galináceo, um boi, enfim, qualquer animal doméstico que, saindo do local onde era habitual estar – a casa do seu dono – fosse aparecer noutro local. Era comum encontrarem-se animais em propriedades distantes daquelas de onde eram oriundos, livres, como a natureza os criou.

Para que houvesse justiça e «o seu a seu dono» se cumprisse, os códigos portugueses, pelo menos até finais do Antigo Regime, continham normas para se resolverem estes casos. Durante dez dias, quem recolhesse animais alheios nas suas propriedades, mantê-los-ia alimentados e em boas condições de alojamento. Se o legítimo dono os não viesse reclamar, deveria dirigir-se, sob pena de multa, ao oficial de justiça mais próximo que decidiria do destino a dar-lhes. Não seria, parece-me, um caso de difícil resolução já que, por todo o país, existiam muitas instituições prontas a receber dádivas, incluindo o «gado do vento», presente maior de um deus menor.

Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.

21 julho 2014

CICLISMO


Homenagem aos Ciclistas do Concelho do Cartaxo
Terminou o campeonato mundial de futebol, o acontecimento máximo da modalidade que congrega mais adeptos em todo o mundo. À volta desse encontro de escala global, movem-se negócios de muitos milhões: as transmissões dos jogos, via rádio e via TV, a hotelaria e a restauração,  os transportes, o merchandising – bandeiras, cachecóis, barretes, entre outras representações icónicas do desporto, elevado a religião, isto sem falar dos honorários dos jogadores e dos técnicos, valores que roçam o despudor, arremessados ao rosto de uma sociedade empobrecida.
Tudo gera dinheiro, a economia agita-se e cria algum emprego temporário. Depois, vem o fim da festa, o desarmar da feira. Que fica, como lucro real, para o país organizador? Que benefícios colhe do «apanhar das canas»? Não saberemos nada de tais contas. Esses números, ainda que sejam publicados, não terão quem os analise ou os contradiga.

Já lá vai o mundial de futebol de 2014 e, com ele, o linguajar futebolês (deveria ter anotado uma meia dúzia de termos que me poderiam valer umas quantas crónicas!) patente nos relatos, nos comentários nas repetições – numerosas e despropositadas – dos jogos, nas previsões dos «oráculos» credenciados para os augúrios. O futebolês é um falar diferente, um dialecto, recheado de expressões novinhas em folha, criativas algumas, adaptadas ou recicladas, outras, mas sempre muito vivas e empolgadas, proferidas com a seriedade e a convicção que mereceriam temas como as guerras e atentados que sangram o mundo, ou a fome que mata, ou as mulheres e crianças assassinadas, silenciosamente, tão silenciosamente que nem para as estatísticas contam.
Deixemos o mundial entrar no limbo, até à próxima edição.

Temos, agora, a decorrer duas modalidades desportivas em que os portugueses costumam a alcançar excelentes resultados, com ou sem pódium: o hóquei em patins, quase a terminar, com mérito para os lusitanos, e o Tour de France, prova na qual, de há muitos anos a esta parte, os portugueses marcam presença e ganham prémios.
Fala-se muito destes desportos na comunicação social? Não me parece. Diz-se o mínimo, mostra-se o mínimo, passa-se à frente para assuntos com mais polpa e sumo, como seja a compra e a venda de jogadores de…futebol.

No Tour deste ano,  participa, entre outros portugueses de coragem e valor, um rapaz simples e risonho, sem vedetismos, e que usa um nome também português: Rui Costa. Quem é? Pois é, nem mais nem menos, que o campeão mundial de ciclismo. Pedala com garra, defende a camisola que veste, como lhe compete. Ainda não vi – mas eu não sou lá muito atenta a essas coisas – bonés, óculos, cachecóis, luvas, camisolas, com o seu nome ou, pelo menos, com o seu nome associado ao logótipo da equipa pela qual corre. O moço merce destaque e o ciclismo também, tal como outras disciplinas esquecidas que educam o corpo e ajudam a formar o caráter.
Tenho muito respeito pelo desporto, em geral. Os gregos, educadores natos, praticavam modalidades que ainda hoje se mantêm vivas. As que acima citei, mais modernas, aproveitaram os avanços técnicos que foram surgindo. Desde criança que aprecio particularmente o ciclismo, talvez por ser cartaxense, da terra de ilustres ciclistas, talvez por ter conhecido um deles que, tendo real valor, mantinha a sua oficina de consertos de bicicletas. Era o seu ofício e nele trabalhava, no passeio fronteiro à sua casa.

Os tempos eram outros. O maior valor em jogo era, então, o desporto pelo desporto. Suponho que terá sido esse o valor que José Maria Nicolau, e os da sua geração, colocou mais alto, ainda que as taças, placas e medalhas ganhas lhe enchessem uma sala.  
Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.

25 junho 2014

VIZINHOS

Cegonhas - um dos progenitores e três juvenis

O Ribatejo, o Alentejo e o baixo Mondego abrigam uma vasta população de cegonhas.
A umas escassas dezenas de metros de minha casa, no cimo de uma torre, há um ninho de cegonhas.

Assisti ao assentamento dos primeiros galhos que rapidamente deram lugar a um largo cesto capaz de acomodar o casal e a descendência.

Passaram já cinco anos sobre esse ato inicial em que, cruzando e entrelaçando pauzitos, se fundou um lar. Dito assim, parece que tudo decorreu de uma forma natural, sem sobressaltos nem incidentes que mereçam ser registados. Acontece que não foram momentos pacíficos, esses, pois, quando o ninho estava, aparentemente, completo, apareceu uma terceira cegonha para nele se instalar.
A luta que se seguiu foi  renhida, com o casal, exaltado, batendo os bicos como claquetes rápidas e ritmadas, emitindo sons guturais e atacando energicamente o (a) intruso(a). Dessa contenda resultou uma vítima. Uma das três aves – não sei qual – partiu uma pata. Voou ainda algum tempo nas proximidades do ninho, com a perna pendente, desarticulada, até se afastar para não mais a avistarmos. Terá morrido, já que, não podendo sustentar-se nas duas patas, era-lhe impossível colher os alimentos.

Nesse ano, o casal que construiu o ninho – ou o novo casal que se formou no rescaldo da briga – criou dois filhotes.
No meio de cada inverno, as obras de restauro do ninho ocupam vários dias e muitas idas e vindas das aves, com materiais presos nos bicos. Durante o choco, e enquanto os filhos são pequeninos, é intenso o trabalho dos pais: a alimentação das crias, as longas horas, de asas distendidas, para as resguardar da chuva e do calor, a limpeza frequente do interior do ninho, a vigilância para afastar os inimigos, enfim, tarefas constantes de pais de família.

Houve um ano em que não criaram. A razão para o «fracasso» foi o humano conforto. No telhado contíguo à torre, foram instalados painéis solares e, por alguns dias, a presença dos operários, tão perto, afastou o casal do ninho, talvez já com ovos para chocar.
Este ano o sucesso foi quase total. Nasceram cinco crias, o que é invulgar na espécie, e quatro delas vingaram. Ultimamente, tem sido muito interessante  assistirmos às aulas de voo. Os juvenis, quase com a envergadura dos adultos, têm-se mantido por casa, à exceção de um, mais maduro ou mais afoito, que já se fez ao mundo. Os outros atentam nos movimentos dos pais e realizam ensaios que consistem em, de asas bem abertas, efectuarem batidas frenéticas, após o que se elevam, na vertical, sobre o ninho, cerca de dois palmos, e se  deixam cair, para recomeçarem tudo de novo.

Esta manhã, olhando por acaso para a residência desta simpática família, assisti, encantada, e pela primeira vez, aos voos iniciais. Um a um, os três irmãos saíram, em voo planado, até ao cimo de um cedro, distante uns nove ou dez metros do ninho. Logo um dos progenitores, que certamente os vigiava, de onde quer que estivesse, se apresentou, voando baixo ao redor da prole, sempre cuidando e, imagino eu, talvez incentivando.
Com  o  desenvolvimento  que apresentam, os juvenis já pouco necessitarão dos pais. Por isso, em breve o ninho estará, por uns meses, desabitado. Depois será restaurado e o ciclo da vida, no ritmo que lhe é próprio, pulsará, outra vez.

Em jeito de autojustificação, termino, afirmando que não é meu costume falar da vizinhança!
Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.

14 junho 2014

CAMINHADAS

Serra de Aire e Candeeiros
Há convites que são irrecusáveis.
Convidam-nos para passear, visitar um paraíso natural, e rejeitamos tal convite? Não creio que alguém o faça, a não ser que tenha prazos ou compromissos a cumprir, doença súbita, ou aqueles «motivos e força maior» que podem significar um «não» rotundo que se quer fazer passar por uma recusa polida.
Nesta primavera convidaram-me para uma caminhada na serra de Aire e Candeeiros. Foi uma jornada em cheio, abençoada por uma temperatura amena.
Tratou-se de subir um troço da serra em grupo, um simpático grupo do qual fazia parte o casal amigo que se lembrou de que também eu haveria de gostar do desafio. E não se enganou, é claro, pois enchi os olhos e a alma daquela beleza tranquila e, ao mesmo tempo, majestática, que têm os lugares que a mão do homem toca com cuidados fraternos, para não estragar o que é perfeito.
No sopé, ao redor da última aldeia, o candeio das oliveiras era exuberante; milhares e milhares de flores miudinhas, cor de marfim, quase a ponto de se tornarem frutos. Por todo o lado, flores e mais flores. O tomilho competia, a espaços, com orquídeas autóctones de pouco mais de um palmo de altura. Entre pedras, beneficiando de algum veio de água que não se deixava perceber, as madressilvas encarregavam-se de perfumar o ambiente, juntamente com outras espécies vegetais de que desconheço os nomes científicos ou, sequer, as «alcunhas» populares.
O esforço da subida, que não foi coisa menor, confesso, teve o seu prémio: uma vista ampla, escalonada, com casinhas de presépio anichadas em conchas de terreno, e um horizonte largo, a diluir-se no cinzento da distância. A paisagem é, como costuma dizer-se, de tirar o fôlego, expressão que, verdadeiramente, não posso – não deveria – utilizar aqui, pois, «sem fôlego» era já a minha condição, a «lanterna vermelha» dos caminhantes.
Esperavam-nos, ainda, outras boas surpresas lá no cimo. No alpendre de uma casinha de pedra (moderna) estava montado um tear de alto liço, com diversos materiais disponíveis para quem quisesse aprender a tecer.
A serra de Aire e Candeeiros, predominantemente calcária, esconde  maravilhas no seu seio, grutas que  atraem, no bom tempo, muitos turistas, nacionais e estrangeiros.
Estes caminhantes puderam, também, visitar uma gruta em forma de galeria de dimensões modestas, pequena amostra do muito que os espeleólogos já estudaram. Não tem luzes nem efeitos espectaculares, pelo que está muito preservada, e assim deverá continuar. No seu interior existe um cilindro oco, espécie de poço, que pode descer-se em rapel, uma meia dúzia de metros, ou pouco mais, feitos com toda a segurança, pois os responsáveis, pessoas preparadas, com anos de treino, não descuram nenhum pormenor. Descer em rapel é uma experiência que nunca tinha tido e que me agradou muito, a ponto de considerar que fiquei cliente.
Terminando, lembrarei, agora, o que todos sabemos: quando se realizam esforços físicos é preciso restaurar o corpinho. Por isso, as actividades findaram com um excelente almoço servido na sede de uma associação que tem como missão preservar o património natural e cultural da região.
Pareceu-me gente determinada, que vai em frente na senda que se propõe seguir. É a caminhada destas  mulheres e destes homens. Que não lhes falte o fôlego.

Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.

22 abril 2014

PÁSCOA

Cameleira 
Hoje é domingo de Páscoa. Chuva miúda, de manhã; chuva grada, de tarde, desmentindo o adágio «Natal ao sol, Páscoa ao forno», já que, o Natal passado, também foi cinzento e molhado. A não ser que o ditado popular se refira ao ano civil e a um Natal ainda por acontecer, o que me parece improvável pois a ronda das festividades anuais reporta-se a tempos muito remotos e a calendários diferentes daquele que agora usamos.

Para os hebreus, a Páscoa assinala a saída do povo de Deus do Egito, país para onde haviam migrado ao longo de séculos. A palavra «Páscoa» significa passagem, a passagem de um país rico, mas onde os hebreus eram estrangeiros, para a terra prometida onde haveriam de fundar o seu país. Tratou-se do movimento de uma nação ao encontro do solo onde edificariam uma pátria.
O jantar da última noite em terra alheia foi carne de cordeiro cujo sangue serviu para marcar a ombreira da porta da casa de cada família hebraica.
Hoje, a Páscoa, no calendário cristão, celebra a Ressurreição de Jesus Cristo e o cumprimento das profecias messiânicas.
Entre os resíduos das memórias antigas, avulta o costume de, na Páscoa, se comer cabrito ou cordeiro assado. Quanto às amêndoas e ao folar, se escavarmos bem o passado, também haveremos de encontrar a origem do seu consumo nesta quadra.
Deixo cair o tema porque, nesta Páscoa, estou predisposta a falar, sobretudo, no presente.

As escolas fecharam para a pausa letiva habitual. Não há aulas; retemperam-se as forças para enfrentar o 3º período e a avaliação final.
Em Portugal, porém, este ano, muitos meninos têm férias diferentes: diariamente vão à sua escola, ou a uma escola próxima, não para aprenderem matérias curriculares mas para subsistirem enquanto pessoas, isto é, para matarem a fome, para terem uma refeição digna desse nome. As cantinas das escolas, nas férias, não podem fechar porque a fome, entre as crianças, é um grito que se escuta em vários registos: olhares baços, bocas que já não riem, violência súbita, laços de amizade que afrouxam ou se quebram. Pais e avós recorrem às cantinas sociais, depois de esgotadas todas as reservas de amor próprio, e procuram ajuda, a mais urgente e imediata. As crianças em idade escolar oriundas dessas famílias, já aprenderam que as férias são, apenas, um tempo sem aulas, mas que o seu itinerário semanal não muda porque a necessidade de alimento a tal obriga.
No caminho de pobreza que trilham, temo que esta seja uma aprendizagem nefasta que pode estrangular, talvez em definitivo, a auto-estima. Temo que esta «ombreira marcada» para o «êxodo» não signifique um caminho de libertação e de justiça.

Para as crianças portuguesas, para todas elas, desejo que a Páscoa seja de alegria e que não haja lugar para amêndoas amargas.

Maria Amélia de Vasconcelos
20 de Abril de 2014
Texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.


30 março 2014

COMÉDIA

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Ao Carnaval não podemos aplicar a frase feita que aplicamos ao Natal: «que é quando o homem quiser».
É sempre possível haver júbilo quando uma criança vem ao mundo. Mas a gargalhada franca, a mofa, a exibição do avesso do quotidiano, têm época própria, a não ser que falemos da comédia que se representa sobre um palco, no cinema ou na televisão.
A comédia, como género teatral, é a forma mais inteligente de rirmos de nós próprios olhando os vícios, os modos e os tiques da sociedade da qual somos o espelho.
A comédia, na Grécia antiga, exigia aos atores o uso de uma máscara vermelhusca, de sorriso grotesco que, só por si, induzia o riso. Já a máscara da tragédia era pálida, cantos da boca descaídos, rugas na testa, sinais externos de que se iriam tratar, em cena, assuntos sérios e graves, com clamores lamentosos: anúncios de guerras, traições, a desonra de uma família nobre, a queda de uma casta ou, mesmo, de uma cidade.
Comédia e tragédia eram formas de unificação do pensamento ou, o mesmo é dizer, transmitiam ensinamentos que visavam a coesão social em torno dos princípios e valores considerados fundadores de uma nação.

Os géneros teatrais dos nossos dias já não podem catalogar-se, assim, tão estritamente, como eram a comédia e a tragédia no mundo antigo.
Bem lá no fundo, porém, é possível encontrar uma ou outra, quando não os laivos de ambas, em discursos enredados, em mimetismos e metamorfoses, de modo que já é muito difícil distinguir qual é a hora do riso ou a das lágrimas. As coisas são, agora, impossíveis de arrumar em categorias e, quando se tenta simplificar, ficam muitos espaços em branco.
É um mundo muito complexo, o nosso;  de modo que, quando os meios de comunicação  nos servirem folias, talvez seja avisado duvidar um pouco para perceber se haverá um fundo obscuro nas entrelinhas da comédia.

Maria Amélia de Vasconcelos
Excerto do texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.

20 fevereiro 2014

CORJA

Não é agradável a palavra que dá título a este escrito. Leva-nos a pensar em associações de indivíduos que só querem o mal alheio, gente desprezível, pronta a enganar, sem escrúpulos, e a beneficiar-se com as trapaças que engendra. É palavra curta, fácil de pronunciar, mas que nos deixa, nos lábios e no espírito, um gosto amargo, pelo significado que tem. Colada a si, traz um séquito de infortúnios: o roubo, o saque, o enxovalho para os que são vítimas da corja: os espoliados. Espertos ou ingénuos, todos podem, numa ocasião ou noutra, cair numa ratoeira bem armada para os «aliviar» dos seus bens, quer materiais, quer simbólicos, como seja o bom nome a que se acham com direito. Ao chegar a este ponto, não há quem não maldiga a corja que o humilhou.

No passado, a palavra não era pejorativa; foi-se aviltando com o tempo, como uma roupa de boa qualidade que encolheu, ganhou nódoas e borbotos, perdeu a cor e acabou convertida num trapo sem préstimo, completamente degradado.  Nem sempre, porém, a palavra deu má imagem de si. Já foi uma palavra digna, usual nas trocas comerciais, na Península Ibérica, com variantes noutros países mediterrânicos, antes de entrar em descrédito, como a confirmar a sentença «no melhor pano cai a nódoa».

Afinal, de que falavam os homens dos séculos XVI, XVII e XVIII quando referiam corja?
Comecemos pelo princípio, como convém.
Nas línguas faladas na Índia e na península arábica usavam-se, no século XVI – e, talvez, mesmo, antes – no vocabulário comercial, palavras que os portugueses, sempre expeditos, adotaram  e fixaram. Assim aparece corja que significava uma vintena de objetos da mesma espécie. Muitos dos artigos de luxo que, dessas paragens, as naus traziam até Lisboa, o grande entreposto da Europa, eram comprados, vendidos e revendidos em corjas, isto é, por grosso; era o caso da porcelana, dos tecidos de seda ou algodão fino e das pedras preciosas.
Com a concorrência da Inglaterra e da Holanda na rota do Oriente, o comércio português decaiu. Os comerciantes, face à maior procura dos produtos, já inflacionados, acabam, nalguns casos, por comprar artigos de menor qualidade que, ao serem, depois, negociados, vão sendo depreciados; «corja» passa a significar um conjunto de coisas reles, de pouco valor.

E, porque as línguas faladas são línguas vivas, organismos sempre a crescer e a alterar-se, com novos vocábulos e novos significados para palavras antigas, corja, antes referida aos objetos, passou a significar pessoas más, associadas com o fito de prejudicar os outros.
Pouco a pouco, os anteriores sentidos de «vintena» e «coisas sem valor» foram-se apagando, por desuso, da memória coletiva.
Restou «a corja», uma palavra ignóbil, apesar de, como vimos, ser descendente de boas famílias.

Maria Amélia de Vasconcelos
Texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.

13 janeiro 2014

CANDEIA

No começo de cada ano, quando se formulam os votos de saúde, paz e prosperidade para a ronda dos 365 dias, parece-me que ficará bem falar de luz: a luz do pensamento, do discernimento, a luz do olhar que nos permite fazer as escolhas e as rejeições, a luz da inspiração, se pensarmos nos atos criativos das artes e das ciências. Precisamos de luz, apenas três letras, palavra curta, rápida de proferir, plena de significados, decisiva nas nossas existências.
Agora que a energia elétrica permite que se faça luz tocando num simples botão, custa imaginar a vida dos tempos antigos, sem os recursos da modernidade.
Os romanos e os outros povos do Mediterrâneo, usavam, para a iluminação, a candeia, ou lucerna, objeto de barro liso ou decorado onde o azeite, impregnando o pavio, se ia consumindo para afastar as trevas.
A palavra candeia vem diretamente do latim, com poucas alterações, como, aliás, muitas outras que usamos. Já candil, que é uma lanterna suspensa, é uma palavra de origem árabe. A função é a mesma: iluminar. O óleo usado também é o mesmo: o azeite. A diferença é que a pequena candeia tem uma pega e pode levar-se na mão para onde se quer, enquanto o candil é pesado e ilumina, com vários pavios, a partir do alto, um compartimento de uma casa. Uma e outro usam-se, ainda, nalguns países do norte de África e do próximo Oriente. Nos templos católicos, o lampadário que indica a presença do divino, é alimentado a azeite.
A oliveira é a mãe deste produto que tem tão vastas aplicações. O fruto é consumido como tal, com geral agrado. Espremido, obtem-se o azeite que é luz, alimento, remédio para dores, bálsamo para feridas, matéria-prima para as indústrias de saboaria e de cosmética. A árvore pode viver séculos, sempre  produtiva. Em Maio, cobre-se de uma flor miudinha, branca, a que, em Portugal, chamamos candeio, como que a lembrar a candeia na qual o óleo a haver será consumido.
O ciclo do azeite inicia-se a meio do inverno, com a prova do azeite novo, da azeitona que foi colhida no final do outono/princípio do inverno. É por essa altura – 2 de Fevereiro – que se celebra o dia de Nossa Senhora das Candeias ( a Candelária, no Brasil), ou Nossa Senhora da Purificação ou, ainda, Nossa Senhora da Luz, culto que foi difundido em Portugal a partir do século XV. A data deste culto à Virgem é fixa, quarenta dias após o nascimento de Jesus, quando as mulheres que tinham dado à luz um varão deveriam acorrer ao templo de Jerusalém para serem purificadas, imolando um animal macho. Maria cumpriu também o costume judaico de ser purificada e de apresentar o Menino no templo e é esse episódio em que se realça a luz do que é puro que se comemora, do ponto de vista religioso, a 2 de Fevereiro. Por causa desta memória, quer a tradição que, nesse dia, nos lares, se frite qualquer alimento, sendo as filhós o alimento/gulodice mais comum. Não sei se o costume se mantem, mas lembro-me, de vez em quando, das filhós da minha meninice, salpicadas de açúcar e canela.
E, como o que é popular tem sempre raízes longínquas às quais vai beber, também o tempo atmosférico se liga a esta ocasião. «Lê-se» o tempo, no seguinte provérbio:
Se Nossa Senhora das Candeias rir (sol, luz), está o inverno para vir; se Nossa Senhora das Candeias chorar (chuva), está o inverno a passar.

Votos de um ano de muita luz para os leitores; que cada um mantenha acesa a sua candeia.

Maria Amélia Timóteo
Texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.

MÉRIDA - ESPANHA


ALEGRIA

Há épocas do ano em que é quase obrigatório, ou, pelo menos, de bom tom, socialmente falando, afivelar uma máscara, forma de nos irmanarmos nos gestos, nos sentimentos, nas emoções. Assim, quando vamos de férias convém mostrar entusiasmo pela mudança de cenário e pela apetência do descanso, sempre merecido. Quando chega o Carnaval, a máscara é faceira, divertida, na perspetiva de vivermos umas horas em que, se nos apetecer, nos poderemos «virar do avesso» sem o risco de que nos colem o rótulo de doidinhos varridos. Há as máscaras para casamentos, batizados, inaugurações, sessões solenes, máscaras para todas as circunstâncias que o mundo nos impõe e das quais, de bom ou mau grado, temos de nos revestir.

O Natal dos nossos dias é decorativo, com muitos brilhos, cores vistosas, invenções diferentes cada ano. Salta das montras paras as ruas, recobre as fachadas, entra-nos em casa pela caixa do correio, com propostas de compras, e, sobretudo, é-nos lautamente servido pela televisão: palavras, música e imagens muito apelativas ao consumo. Contudo, parece-me que, nestes primeiros anos do século XXI, estará menos espalhafatoso do que já foi, relativamente aos anos 80 e 90 do século passado; ou, então, andará mais sofisticado, seguindo os ditames da moda que valorizam a sobriedade.

Com ou sem derivas de ornamentos, o Natal celebra a vida. O nascimento de uma criança é sempre um acontecimento modificador, mesmo quando essa criança, pelas mais diversas razões, não é desejada; tudo muda na família quando um novo membro se apresenta. Que sentimentos desperta? Que necessidades reclama ver satisfeitas? Que caminho de vida será o seu?

Tratando-se do Natal de Jesus, as profecias antigas foram, passo a passo, cumpridas. Para quem crê, a Sua missão salvítica é esperança para o mundo, que o mesmo é dizer, alegria, não só a alegria fugaz de um momento, ainda que especial, mas a alegria fundada e plena, aquela alegria que rompe, mesmo através de um pequeno rasgo num manto de tristeza ou de indiferença. A força dessa alegria, capaz de trespassar a mais densa mágoa ou o mais duro gelo, vale como um tesouro que precisamos de conservar para o distribuirmos quando desejamos a alguém «Feliz Natal». Com todas as luzes artificiais, prendas e abundância sobre a mesa, pode comemorar-se a quadra natalícia, mas fica por cumprir o Natal, porque falta a chama que é o dom da alegria interior.

Que cada um de nós deixe vir ao de cima essa luz que nos foi concedida para poder desejar a todos um Santo Natal.

Maria Amélia Timóteo
Texto publicado no jornal da S. C. M. do Cartaxo.