10 dezembro 2010

NATAIS


Técnica mista sobre tela
Só três figurinhas
o Menino, Maria, José
e umas palhinhas
na manjedoura desconjuntada
em cada Dezembro restaurada.

Era de esferovite o castelo
prata e ouro
ameias e um sino
que por não tocar
nunca havia de acordar
o Menino.

Onde já se viu o Salvador
ir nascer assim
em tal esplendor?
Um castelo? Nem mais!
E com escadaria
dos mesmos metais
para que José e Maria
pudessem honrar
os reis
que haviam de chegar.

O conjunto
para maior dignidade
tinha o azul como fundo
a colcha, o laço
e estrelas uma infinidade
com alfinetes pregadas.

Era o mais lindo
Presépio do mundo.
Era tão belo
que dois pares de olhos
só de vê-lo
enchiam de luz
a casa inteira.

Então no calor
dessa fogueira
Pai e Mãe recolhiam
de mansinho
esses presentes de Amor
deixados por Jesus
no sapatinho.

Maria Amélia de Vasconcelos


01 dezembro 2010

VIAGENS

Nos tempos actuais, falar de viagens associa-se à ideia de férias, diversão, conhecimento de novos lugares, pessoas diferentes e seus costumes. As viagens de negócios, de estudo, de encontro entre especialistas dos diferentes saberes, sendo de trabalho, incluem, na maioria dos casos, um intervalo, curto que seja, para uma fuga ao quotidiano. Mesmo as peregrinações, quando usam os meios de transporte, não enjeitam uma pausa para as fotos, a compra de lembranças, as visitas aos locais mais turísticos da região.
Noutros tempos, viajar equivalia a pôr a vida em risco: despedidas pungentes da família, testamento firmado, enfim, disposições de quem sabia que a possibilidade de não regressar era muito alta. E, no entanto, viajava-se, por necessidades de vária ordem, a menor das quais não seria, certamente, o espírito irrequieto que é próprio do ser humano. Falemos, então, de um viajante incansável: São Nicolau.

Na segunda metade do século III d.C., nasceu em Patras, na Grécia, um menino a quem deram o nome de Nicolau, nome auspicioso pois inicia-se com «nicos» que quer dizer «Vitória». Cristão piedoso, recebida a herança paterna, Nicolau praticava a caridade entre os seus concidadãos, sempre de forma discreta. Um dia teve conhecimento de que um seu vizinho, pai de três raparigas casadoiras, não tendo dinheiro para os seus dotes, intentava vendê-las como escravas. Condoído pelo que ouvira, dirigiu-se, à noite, a casa do vizinho e, através da chaminé, lançou para dentro de casa uma bolsa com moedas de oiro. A bolsa foi cair dentro de uma meia que secava na lareira e foi encontrada, na manhã seguinte, com grande alegria da família, especialmente da filha mais velha que via, assim, assegurado o seu dote. Algum tempo depois, Nicolau lançou uma segunda bolsa, tendo em mente contemplar a filha do meio. Depois deste gesto, o vizinho decidiu manter-se alerta para surpreender o anónimo benfeitor que, certamente, haveria de deixar, pelo mesmo processo, um terceiro dote. Uma certa noite, quando ouviu o tilintar das moedas caindo dentro da meia, o pai de família saiu à rua e, reconhecendo Nicolau, agradeceu-lhe, comovido, a sua generosidade. Nicolau, no entanto, proibiu-o de contar o sucedido a quem quer que fosse, o que não evitou que o caso caísse no domínio público.
Algum tempo depois, Nicolau viajou até Mira, na Ásia Menor, actualmente a cidade de Demre, na Turquia. De forma miraculosa, ao entrar na catedral para rezar, Nicolau viu-se escolhido para bispo, pois o anterior tinha falecido e ainda não tinha sido encontrado substituto. A autoridade da sua pregação, a justeza das suas decisões e os milagres que lhe eram atribuídos, granjearam-lhe fama de santo. No desempenho das suas funções pastorais, Nicolau teve de viajar muito. Alguns autores dão-no como estando presente no Concílio de Niceia, mas não há documentos que o atestem. São Nicolau é um santo popular, orago de muitas igrejas, padroeiro da Grécia, da Rússia, e de Bári, a cidade italiana para onde os seus restos mortais foram transladados no século XI, dando origem a que a cidade se tornasse num grande centro de peregrinação, na Idade Média. Em 1969, o papa Paulo VI retirou do calendário oficial romano o dia de São Nicolau (6 de Dezembro), em virtude da escassa informação factual sobre a sua vida.
Contudo, as lendas fazem caminho, independentemente da existência, ou não, de documentos que as creditem. O caldo das lendas (ou milagres), acrescentado ao longo dos tempos, contaminado por outras lendas, porventura mais antigas, aumentado com o talento de quem as relata, deu o mote para que, no século XIX (1823), o professor de um seminário americano, Clement Clark Moore, tenha escrito um poema intitulado «Relato de uma Visita de São Nicolau», para oferecer, no Natal, às filhas. O poema circulou anónimo algum tempo. Nele, o autor referia uma viagem do santo, num trenó puxado por oito renas, na noite de Natal. Em 1866, o caricaturista americano, de origem alemã, Thomas Nast, publicou uma gravura de São Nicolau, sem os atributos episcopais, uma figura rotunda, jovial, de barbas brancas, fato vermelho e botas, satirizando o aspecto de um holandês das classes populares da época.
O poema, falando de um trenó e de renas, conjuntamente com a gravura de Nast, constituíram o suporte para a figura do Pai Natal, o popular viajante que, numa só noite, chega a todas as casas onde habite uma criança, carregado com um enorme saco cheio dos sonhos de cada uma, sonhos que podem ser a resposta a um pedido específico, ou constituir uma surpresa, quando os sonhos da criança são impossíveis de concretizar.
Os povos que fundaram a América, vindos dos vários recantos da velha Europa, fizeram muito para difundir, à escala mundial, esta imagem do Pai Natal. Os nórdicos ter-se-ão encarregado do trenó e das renas. O sino pode ter vindo de qualquer ponto. A capacidade de voar e estar, ao mesmo tempo, em vários lugares, é fácil de entender, pois é a ambição mais antiga dos homens…

Vivam as lendas e os sonhos que as ajudam a perdurar. E vivam os povos que têm memória.

Maria Amélia de Vasconcelos

Texto publicado no Boletim Informativo da S.C.da M.do Cartaxo.

14 novembro 2010

PARTILHA

Solidariedade
é um clarão alado
ave que nos ensina
que dar e receber
é um só movimento
pelo mesmo alento
gerado.

Pássaro sem idade
que o sulco do seu voar
junte e imprima
os elos da cadeia
que se quer inteira
de irmão para irmão
em fraterno partilhar.

Nimbado de claridade
há uma candeia a brilhar
plantada em seu interior.
Com ela se ateia a chama
que volteando ao redor
ilumina e incendeia
homens de boa vontade.

Solidariedade
é tecer
a realidade sem sombra.

Solidariedade
é um pássaro de luz
a arder!

Maria Amélia de Vasconcelos

01 novembro 2010

A CASTANHA


Castanheiros-Val d'Oise-França
Chega com o Outono ou, talvez, fiquemos a saber que é Outono quando a vemos, luzidia, com um biquinho claro a contrastar com a cor quente, exposta nas feiras, nos mercados, no comércio em geral, quase a pedir que a rolemos entre as mãos. Se, distraídos, os olhos a não encontrarem, então é o olfacto que a irá descobrir, na via pública, sobre as brasas, dentro de um assador de barro, no carrinho, a banca móvel dos que, até ao começo da Primavera, fazem da venda das castanhas assadas o seu ganha-pão.
O gosto das castanhas assadas, compradas na rua, parece mais apurado, talvez por envolver como que um ritual: o fumo envolvente, ir andando e descascando, as mãos mais quentes, a semente esmagada na boca, numa pasta farinhenta e gostosa. E, em fim de festa, as mãos sujas, após a gula satisfeita, pois não há pecado sem expiação…
Cozida, é igualmente excelente. Para além do sal, pode levar pau de canela, erva-doce, cominhos. Acompanha bem pratos de carne ou aves, em puré ou inteira, segundo o uso ancestral, ou não tenha sido a castanha a base da alimentação dos povos europeus antes da batata, americana de nascimento, ter tomado conta dos nossos hábitos culinários. Conhecida na Europa no século XVI, a batata levou mais de um século a impor-se e, ainda assim, não subiu logo às mesas aristocráticas. É que a verdadeira nobreza tem de se conquistar!
O castanheiro é abundante no nosso país, sobretudo no norte granítico e xistoso. Mais a sul, a excepção é a serra de São Mamede, no Alto Alentejo, cujo coberto vegetal inclui, com densidade apreciável, matas de castanheiros mansos – os soutos. Quer o castanheiro manso, que produz a castanha, quer o castanheiro bravo cuja madeira – o castanho – é usada na marcenaria, são espécies que alcançam grande porte e podem viver centenas de anos.
Os frutos do castanheiro manso, os ouriços, são uns novelos de espinhos forrados de um veludo de cor crua que caem da árvore quando as folhas começam a pintar os rebordos de oiro velho e se deixam levar pelos caprichos do vento. À volta da árvore, os ouriços, abertos em quatro, mostram as sementes lustrosas, duas ou três castanhas que, não só os homens, mas também alguns bichos, deveras apreciam.
Sob a vasta sombra dos castanheiros adultos, podem os caminhantes resguardar-se dos ardores do sol, e, já que o abrigo é propício, muitas comunidades se hão-de ter reunido nesse aconchego para contarem as histórias que, de geração em geração, formariam a tradição oral dos povos. E, enquanto se desfiavam acontecimentos ou a memória refeita deles, terá nascido o costume do magusto, uma «refeição» comunitária que a floresta nos oferece, em toda a pureza do que é natural.
Nalgum desses momentos de descanso ou de convívio, um ou outro ouriço mais lesto, lá no alto, ter-se-á aberto e deixado cair as sementes sobre a cabeça de alguém que, mais pela surpresa do que pela dor, haveria de ter exclamado: «Ui, apanhei uma castanhada!».

Maria Amélia de Vasconcelos

Texto publicado no jornal interno da S.C.da M.do Cartaxo.


16 outubro 2010

POENTE

Pôr-do-Sol 
Há um barco de luz
ancorado no poente
as velas altas flamas
consumidas e libertas
arco-íris cálido ventre.

A forma da asa incerta
contornada de carmim
pena a pena desenhada
na claridade fundente
cetim de colcha bordada
enlace de céu e mar.

Amar aquele momento
pelo que é e há-de ser
o findar e o recomeço
o dia mais ausente
a noite nacarada concha
onde se espera adormecer.

É o instante sem igual
de romper as veias sem temor
caldeando o sangue e o sal
o suor e o pensamento
amassar a flor do alimento
e sorver de um hausto só
o espírito de um licor.

Maria Amélia de Vasconcelos

10 outubro 2010

O PONTO

Uma das palavras mais roladas da nossa língua, o ponto, pode conter uma imensidade de significados.
Em termos geométricos, «ponto» é uma figura sem dimensões, uma abstracção, um quase nada. Serão necessários muitos pontos, encostadinhos, para se iniciar uma linha. E seriam necessárias muitas linhas, de escrita, bem entendido, para destacarmos, um a um, todos os valores que atribuímos à palavra ponto.

Falaremos, pois, tão somente, de alguns, em jeito de pincelada solta, de modo a que os leitores recordem outros usos desta palavra, enriquecendo, assim, o rol de significados.
Como para tudo há sempre um ponto de partida, podemos começar pelo ponto de exame, o teste, como agora é mais corrente dizer-se. Esse ponto é um questionário a que os alunos têm de responder, com maior ou menor grau de correcção. Depois de avaliado o teste, o resultado será expresso em pontos.

Se o tema for a doçaria – compotas, geleias, doces de espécie – os mestres precisam de obter, para cada especialidade, o ponto adequado do açúcar para que a receita saia bem. Estando o ponto no seu máximo, designa-se ponto de rebuçado, uma expressão que utilizamos mesmo quando não é de coisas doces que estamos a tratar.

Na costura e nos bordados, então, é um nunca mais acabar de pontos. O cheio, de sombra, atrás, de luva, de cruz, de cadeia…Um dos mais comuns é o ponto-pé-de-flor, título, também, de um romance. Sendo muito simples, ensinava-se, na infância, às meninas e, apesar do nome, servia para preencher muitos outros desenhos, que não só as hastezinhas das flores.

Considerando a palavra escrita, entendemo-nos todos melhor se usarmos pontuação. As ideias tornam-se mais claras com a ajuda de pontos. E, quando o texto se destina a «bom entendedor», juntamos três pontinhos a uma frase, chamamos-lhes reticências, e a conversa fica concluída.

Na linguagem oral, em discussões mais ou menos acaloradas, já ouvimos, decerto, alguém proclamar que o seu ponto de honra é tal…e tal…

Nos locais de trabalho, os funcionários marcam o ponto, entrada e saída, no relógio de ponto para que não seja posta em causa a sua «pontualidade».

Não nos podemos esquecer – seria falta imperdoável – do ponto do teatro. Até há uns anos, o teatro declamado, por causa da fidelidade ao texto, e sendo verdade que os actores também podem ter perdas de memória em cena , socorria-se de um trabalhador imprescindível. Com a peça à sua frente, metido num espaço minúsculo, à boca de cena ( a caixa do ponto), o ponto ia lendo, com um ligeiro avanço, as falas que competiam a cada personagem. Hoje, mercê das tecnologias áudio, tal profissão já não existe.

Em compensação falamos, agora de um ponto novo, o ecoponto, local onde devemos depositar os resíduos que produzimos para que possam ser reciclados.

Enfim, estando a ponto de terminar estas congeminações, resta-me reiterar que o nosso ponto de encontro se manterá, aqui, nas Palavras Roladas, mas, sem data marcada. Ora aí é que bate o ponto: o local é certo, o calendário variável. Ponto final.

Maria Amélia de Vasconcelos

Excerto do texto publicado no jornal interno da S.C.da M.do Cartaxo.

05 outubro 2010

EMBONDEIRO

Eram ratos suspensos                                    
os frutos do embondeiro
túrgidos da seiva
do desmedido celeiro
que os sustinha.

A garça vinha saciada
mirava ainda o pesqueiro
a asa leve afagando
a camurça dos frutos.

Quando o derradeiro
fulgor do sol
revestia de prata
o corpo do embondeiro
era chegada
a hora da transmutação.

Então fruto e garça a par
são vela a arder
e flor a desabrochar
liturgia e oração
entre a gase do dia
e a dobra da noite
derramada pelo chão.

Maria Amélia de Vasconcelos

02 outubro 2010

FOGO


S/T - Técnica mista sobre tela
O fogo é um dos mais valiosos conhecimentos da humanidade, indispensável para o seu progresso, não só o progresso material que fez o mundo mudar e tornar-se uma morada cómoda, mas, também, o progresso do espírito pois, ao redor do fogo, se reuniram os homens que, com cânticos, danças e palavras portadoras de memórias, moldaram as civilizações. O convívio no seio dos clãs, das tribos, das famílias, ao calor das fogueiras, ajudou a firmar os costumes comuns, ensinou a respeitar as tradições e a exaltar os heróis, contribuiu para exorcizar alguns medos. À volta da fogueira, desde tempos remotos até aos nossos dias, trocam-se saberes, fortalecem-se laços, brinda-se à alegria e medita-se sobre o papel do homem na terra e sobre o seu destino último.

Na civilização da Grécia antiga, o fogo, juntamente com o ar, a água e a terra, era um elemento vital, envolto em mitos, tal como os outros três elementos. A força que detinham estava na origem de toda a criação, da alma, inclusive.

No respeitante ao fogo, em breves traços, a mitologia refere que Zeus, o mais poderoso de todos os deuses, irritado com o mau comportamento dos homens, lho retirou. Por causa desta perda, de tamanha importância, houve um retrocesso civilizacional, só recuperado quando um herói, Prometeu, subiu ao Olimpo, a morada dos deuses, roubou o fogo e entregou um facho incandescente a Hefesto, o deus ferreiro, que, assim, pôde continuar a forjar as armas dos heróis invencíveis e a moldar os artefactos que serviam à agricultura, o sustento dos homens. Hefesto era mestre na sua arte, a qual, aperfeiçoando-se e expandindo-se, se tornou em técnica, na paz e na guerra.

Vivemos num mundo de objectos, cada dia mais sofisticados. Se neles atentarmos encontraremos em todos – e o mesmo se aplica aos químicos – o fogo como interveniente, próximo ou remoto.

O fogo, enquanto elemento vital, é benfazejo. Que dizer, então, quando, tomado dos mais violentos excessos, atinge uma dimensão selvática, assassina? Como encará-lo quando destrói vidas e património, quando reveste de desolação o que os olhos vêem e o coração sente? Temos, então, de lhe chamar «incêndio», palavra que atemoriza.

Todos os anos o nosso país é, largamente, incendiado, dias a fio consumido por chamas que geram imagens de aflição e de impotência perante um flagelo que é recorrente e, mais ou menos, sazonal. Todos os anos ficamos mais pobres e nos perguntamos quem ateia estes fogos. Os pobres de espírito, os socialmente marginalizados? É a estes que se aponta o dedo, os elos fracos. O clima que temos, a orografia que dificulta o socorro também fazem parte da lista dos culpados, como se estas realidades fossem alteráveis. Eu não creio que os incêndios sejam uma praga sem remédio a que estamos sujeitos. Sabemos que não pode estar um polícia atrás de cada potencial incendiário. As respostas dos responsáveis pela coisa pública, através da legislação que organiza o território, que regula a utilização dos solos, que zela pela  boa saúde das matas e florestas, existem. Mas serão cumpridas as leis? Os meios de que dispõe a protecção civil e os bombeiros revelam-se insuficientes. Ou serão mal utilizados? Ou não cobrem, por igual, todo o território? À volta do fenómeno dos incêndios em Portugal há muitas perguntas no ar. Parece-me, contudo, que há uma educação cívica, abrangente, a fazer, que vai para além dos cartazes, dos slogans, das palestras televisivas, dos discursos bem intencionados, ou antes, que use todos estes meios, massivamente, começando na escola, nos estádios de futebol, nas associações de qualquer índole, o ano inteiro, porque as perdas que o país sofre têm reflexos durante décadas. É preciso que os portugueses conheçam o fogo, não só na pirotecnia das festas e romarias, mas no seu reverso temível, para que saibam proteger-se dos seus efeitos nefastos.

Maria Amélia de Vasconcelos

Texto publicado no jornal interno da S.C.da M.do Cartaxo.

30 setembro 2010

INTIMIDADE

Sílaba átona
calada no final da rima
a conta que não conta
na vibração do som.

O silêncio pardo
sem urgência
a saída veludosa
a cor pastel
o sabor do mel
em lábios de cardo.

Opaca e diluída
na atonia de ser assim
penumbra de quase dia
candeia do orvalho.

A sílaba átona
é a pele do poema
o cair do pano
no final da cena.

Com ela me confirmo
dela me revisto
poeira fina
dos meus dias.

Maria Amélia de Vasconcelos

FORGARRA

Forgarra não é uma palavra rolada.
Forgarra não é, sequer, uma palavra, no sentido em que não serve à comunicação, nunca se ouviu pronunciar, não foi, e nem será, tão pouco, encontrada em qualquer dicionário, ninguém lhe conhece o significado.
Forgarra nasceu de uma reflexão acerca dos modos tão diversos como as pessoas se relacionam com os bens materiais, em geral, e com os de primeira necessidade, em particular, em comparação com o interesse que demonstram na apreciação do que é belo, aspecto que consideram menor, na maioria dos casos.

O tema trouxe-me à memória a fábula da cigarra e da formiga, sobejamente conhecida e citada, a preferida pelos mais velhos, olhos postos na formiga, para aconselharem a juventude a trabalhar afincadamente, a poupar tempo e a investir esforço, conseguindo, assim, gerir bem a vidinha e evitar sobressaltos financeiros.

Durante o Verão, a cigarra dedicou-se à música. E não foi o único bichinho sobre a terra a quem a inspiração do bom tempo bafejou. Grilos, sapos, rãs, libelinhas, moscardos, um coro de pássaros, cada qual com seus recursos, foi aperfeiçoando os respectivos dons.
A formiga, entretanto, trabalhou de sol a sol, carregando mantimentos para os gastos e o conforto da sua comunidade. Entesourou mais do que lhe era necessário? Estou em crer que sim.
Na hora em que os alimentos escassearam em sua casa, a cigarra recorreu à formiga, confiada na ajuda. A formiga, como reagiu? Preferiu que os excedentes que tinha apodrecessem a partilhá-los com quem tinha fome. Por causa disso, a fábula sugere defeitos de carácter à formiga: avarenta, desapiedada, vingativa, escarninha, soberba…
Esqueceu-se, porém, o «autor» - quem escreve e reescreve as fábulas não se pode lembrar de tudo, não é? - de propor uma outra causa para o comportamento da formiga: ouvido duro para a música! Tivesse ela escutado as harmonias ao seu redor, certamente teria feito uma pausa na faina, por um pouco que fosse, para as apreciar, como seria devido.
A formiga laboriosa talvez não mereça injúrias. Não terá sido a sua falta de sensibilidade para a música a razão pela qual negou ajuda à cigarra cuja arte desvalorizava porque a desconhecia? Se no seu labor tivesse feito uma pausa para fruir a beleza, outra teria sido a sua atitude.

Cigarra e formiga são apontadas aos homens como exemplos. A entrega aos prazeres, sem cuidar do essencial, a primeira; a segunda é a fura-vidas, a boa gestora, dona absoluta do que angariou. Feitios, diremos nós que conhecemos os dois estereótipos, em cada um reconhecendo o seu tanto de razão, quando as «cores» não são muito carregadas, quer para um lado, quer para o outro. Na verdade, o que nos dava jeito seguir como exemplo era a forgarra, ou melhor, uma multidão de forgarras que nos ensinassem a distribuir adequadamente os nossos dons, e não só no tempo amável em que tudo é risonho, mas também no cinzento Inverno.

Forgarra é palavra que nem existe. No entanto, andam por aí algumas forgarras, lá isso andam, conjugando sabiamente labor e lazer.
Elas são a esperança de equilíbrio no mundo, entre o ser e o ter, em partes iguais, de preferência.

Maria Amélia de Vasconcelos

Texto publicado no jornal interno da S.C.da M.do Cartaxo.

29 setembro 2010

ÁRVORE

Que nome te dou
árvore?
Qual o exacto nome
que o compêndio registou?

Ímpar entre as iguais
como dizer
teu licor de vida
tua alma universal?

Perto do teu abraço
rumo ao mais fundo de mim
ergo-me ao mais alto
no espaço.

Sustida entre a raiz e o horizonte
teu sopro me vivifica
teu hálito verde me habita
agita vagas em meu regaço.

Como nomear-te
árvore
se és o eco do além
indizível na minha voz?

Nomear-te é perder-te
para as bocas profanas
que desatam os nós
dos silêncios sem pudor.

Fica e sê.
Juntas numa só voz
cantaremos hossanas.

Maria Amélia de Vasconcelos

27 setembro 2010

O MAR



Mar em Porto Novo
Dizemos «mar» e o som sai aberto, claro, vibrante.
A palavra é curta mas contém um universo de informação tão vasto como o próprio mar. Encerra uma pluralidade de informações para quem a pronuncia, para quem a escuta, para quem nela pensa. Serão tantas as significações quantas as vivências de cada um. É uma palavra querida para os poetas, um conceito abrangente para os filósofos, uma emoção para os artistas, um objecto de constante estudo para os cientistas, um campo de trabalho árduo para pescadores e marinheiros, um refúgio para o lazer, uma pista para os desportos…

Mar congrega amor, espanto, temor; sempre emoções fortes.
Nunca esquecerei a emoção desmedida de uma criança que, numa visita de estudo, contemplou, pela primeira vez, o mar. Ainda dentro do autocarro, de braços erguidos, clamava MAR, MAR, MAR, para depois balbuciar, recolhida, repetidamente, «mar» como se quisesse guardar para sempre aquele deslumbramento.

Este Verão voltei a conviver com o mar. Não uma daquelas visitas rápidas, de cortesia, só umas horas, o tempo de dizer «olá, estou de novo aqui, não sabes como sentia saudades…». Não, desta vez foram uns dias pausados, umas férias que permitiram uma conversa longa que era preciso pôr em dia. Conversa íntima, é claro, que não é chamada para este escrito, voltado para a realidade que fui encontrar.

O local, que tão bem conheço, recebeu muitas beneficiações: passadiços suspensos para o acesso à praia, uma forma de proteger as dunas, muitas quase planas já, devido aos abusos de quem, pelo facto de possuir um veículo «adequado», julga poder pisar a eito; mais e melhores passadeiras na praia; restauro dos apoios de praia; um posto de socorros; um passeio pedonal e uma ciclovia, ambos bem sinalizados.

Fiquei contente por ver, posta em prática, a legislação que visa proteger o ambiente e dar segurança aos utentes. Igualmente louvo o empenho autárquico na concepção dos equipamentos, bem como na sua boa conservação e limpeza. Custa muito caro manter o que foi instalado para o conforto e a segurança dos banhistas, preservando, ao mesmo tempo, a riqueza ambiental pela qual, é obrigação de todos, velar.

Há, porém, um ponto negativo que quero assinalar. Na véspera de terminarem as minhas férias, na entrada de um passadiço, entre o parque de estacionamento automóvel e o passeio pedonal, dei conta de dois pequenos escaravelhos, aos ziguezagues, tentando fazer caminho entre algo que lhes entravava o percurso. Sabem os leitores o que dificultava a vida aos bichinhos? Pois, nem mais nem menos, do que uma apreciável quantidade de beatas de cigarros, muito juntas, o que é indício da pressa, da pouca sensibilidade (ou civismo?) de um qualquer automobilista que despejou, em local protegido, o cinzeiro do seu carro, exactamente ao lado de um caixote do lixo!

Aplausos, pois, para a legislação ambiental; aplausos para a autarquia que a cumpre. Lamentavelmente, um olhar de amarga descrença sobre os nossos contemporâneos que ainda não entenderam que a Terra é a nossa casa comum. É preciso continuarmos a insistir no discurso da protecção ambiental para que todos o oiçam, como ouvimos o canto do mar, sempre presente na nossa memória.

Maria Amélia de Vasconcelos

Texto publicado no jornal interno da S.C.da M.do Cartaxo.

25 setembro 2010

CREPÚSCULO

Nem o tempo para uma prece
entre o círculo de luz crua
e o véu crepuscular
avançando em tropel
sobre o espelho do mar.

No cimo do morro
ainda o sol a pique
sem um aviso de sombra
nem um sussurro de brisa
que fique como sinal.

Nada para anunciar
o cenário irreal:
o sol rompendo o mar
o azul afogado em fogo
sorvido até à última onda
quebrada atrás do Mussulo.

E logo se desvanece a ilha
de névoa revestida
logo se adensa e escurece.
Nem o tempo de uma prece
nem a Deus um louvor
por tamanha maravilha.

A noite se ergue inteira
feiticeira de brando rumor.
Dia e noite um só instante
mais breve que uma prece.

Quem sentiu jamais esquece.

Maria Amélia de Vasconcelos

21 setembro 2010

ALCACHOFRAS


Alcachofras em flor
Em Maio já deixam ver as cabecinhas, de um roxo azulado, no topo das hastes firmes. Elas aí estão, as alcachofras, rompendo ao acaso em qualquer canto, às vezes entre as pedras, compondo com garbo o jardim de flores silvestres que é o nosso país na Primavera.

Bem defendidas pela pele espinhosa, sendo, como são, cardos, não as julgo apetecíveis, como alimento, pelos animais. Talvez as cabras as possam tasquinhar, quando tenras, ou os dromedários do norte de África, onde também são espontâneas.

Há, no entanto, uma espécie de alcachofras cultivadas que constituem um pitéu muito apreciado em alguns países da Europa. São caras e requintadas mas ficarão de fora desta conversa, à qual só são admitidas as alcachofras maninhas, colhidas por ocasião dos santos populares: Santo António, São João e São Pedro, o último evocado pela Igreja no mesmo dia que São Paulo que, sabe-se lá porquê, não incorpora a lista dos festejados popularmente. Estas comemorações de Junho vão enraizar em costumes anteriores ao Cristianismo, quando se celebrava o solstício de Verão.

Quando o asfalto ainda não cobria as ruas e travessas das povoações ribatejanas, acendiam-se fogueiras em Junho, às portas das casas, nos dias doze, vinte e três e vinte e oito, vésperas dos dias consagrados aos três santos. Vides e alguma carqueja para o fogo inicial que ia crescendo, depois, com o rosmaninho, o alecrim e a alfazema, em chamas de altura variável, eram os cheiros que perfumavam o ar e convidavam a mocidade a saltar fogueira. Havia grupos que percorriam a povoação saltando as fogueiras e lançando «cobrinhas», ou bichas de rabiar, e outros pequenos arremedos de fogo-de-artifício, em forma de cilindros, os quais, rolados entre as mãos, produziam pequenas faíscas; eram os «valeverdes» acrescentando brilho às noites de folia. Em casas abastadas ou onde se celebrasse qualquer festa familiar coincidente com a festa popular, podia tocar um acordeon ou um gira-discos, colocado estrategicamente perto da janela, para que a música fosse fruída por todos.

Perto da meia-noite, «deitava-se» a alcachofra, mais as raparigas que os rapazes, se a memória não me falha. Era uma coisa simples: «deitar» a alcachofra era queimar levemente a inflorescência numa fogueira já em declínio, enquanto o pensamento se concentrava no(a) amado(a). A seguir, espetava-se a alcachofra num canteiro ou num vaso, confiando que, pela manhã, estivesse fresca como quando fora colhida. Essa frescura, em particular se a noite tivesse sido de luar, era o sinal inequívoco de que o amor era correspondido.

Não valia, porém, a pena guardar uma alcachofra refllorida no Santo António para a voltar a queimar na fogueira do São João ou do São Pedro. Experimentei isso algumas vezes, graças ao «bichinho» da racionalidade, por teima em descobrir se o milagre se repetia sem limites, mas, na manhã seguinte, nada mais havia a não ser uma alcachofra requeimada, de fazer dó, sem ânimo para reflorir. É que este tipo de milagres são assim mesmo: os génios que os produzem não se deixam enganar pelas cabeças que julgam poder reduzir o que é mágico a fenómenos físicos, previsíveis, comprováveis.

Testemunho, aqui, essa lição que aprendi: só tocamos a magia quando deixamos o coração e a mente completamente abertos para que ela livremente se manifeste e faça caminho dentro de nós.

A magia é, tão somente, o reflorescimento da esperança, o quinhão de esperança que a cada um cabe, em cada nova manhã.

Maria Amélia de Vasconcelos

Texto publicado no jornal interno da S.C.da M.do Cartaxo.

30 agosto 2010

LUCIDEZ

Maria da Luz, ou só Luz, para os colegas, na pressa dos contactos de trabalho, ou Luzinha, como a chamavam a avó e a tia Alice quando dela falavam a amigos ou a conhecidos de maior proximidade…

Nascida em terra de granito e ventos rijos, na casa de família aprendeu bons costumes e bom trato. Alegre e confiante, por natureza, foi encontrando sorrisos e a eles foi correspondendo.

O casamento, tão bem augurado, levou-a para a cidade grande. Em pouco tempo, porém, a relação foi resvalando, de socalco em socalco, para um pântano sem remédio. O primeiro inimigo que ela reconheceu foi o álcool e o seu cortejo de infâmias: vexames públicos, humilhações privadas, palavras que feriam, agressões físicas. Não era, contudo, o álcool o único inimigo. O jogo era a outra face da mesma moeda pela qual a sua juventude fora trocada. Jogo e álcool, ou a inversa, embaciavam, dia a dia, o brilho dos seus olhos.

Depois do nascimento do segundo filho, Maria da Luz começou a confeccionar em casa bolinhos e salgados que vendia às amigas. Valendo-se de velhos conhecimentos dos pais, conseguiu um primeiro emprego, de modesta remuneração, mas que veio acrescentar sustento aos filhos.

Quando algum tempo depois o marido, fugindo ao pagamento de dívidas, abandonou a casa, ela já progredira na empresa. Dessa época, diria mais tarde, entre irónica e séria: "Quando o meu marido me fez o favor de se ir embora…"

Na adolescência dos filhos, acompanhou-os nos estudos e ganhou, ela própria, vontade de voltar a estudar. O bando de amigos dos miúdos abriu-lhe um lugar, de igual para igual, no seu seio. Aqueles com quem mais de perto privava tratavam-na por Luzinha e acendiam, sem o saberem, as velas da memória da infância e um sorriso mais amplo na sua face.

Pouco antes do falecimento da tia Alice, em seu juízo até ao fim, ficou a saber, pela sua boca, que o nome de baptismo fora escolhido pela tia. "Sabes, Luzinha? Quando os teus olhitos se abriram pela primeira vez, vi neles a transparência de um lago atravessado pela claridade da lua, assim…como que o encontro entre o que é profundo e o que é iluminado…Como dizer? Nos teus olhos encontrei lucidez…"

Luz, Luzinha, lucidez…

Para "lucidez", os dicionários não apresentam, como sinónimo, "profundidade". Mas, como encontrar a lucidez, se não descermos ao mais fundo das coisas e não esperarmos que os seus contornos se desenhem na luz?

Maria Amélia de Vasconcelos

Texto publicado no jornal interno da S.C.da M.do Cartaxo.

06 agosto 2010

MAÇÃ


Macieira em flor
O pomar não era extenso. Umas três dúzias de árvores ainda novas, todas do mesmo porte, alinhadas num terreno de leve inclinação, vistas da colina formavam um tapete, tapete branco-rosa de borbotos sedosos que deixavam à mostra uns apontamentos de verde indeciso, tímido como quem entra em cena sem ter o papel bem decorado.

Eram macieiras no esplendor da floração. Lá virá o tempo dos frutos, diremos nós, antecipando o perfume e o sabor de uma maçã.

Nos nossos dias, porém, o tempo das maçãs – e de todos os outros frutos cultivados pelo homem – é todos os dias, para nosso deleite. As estufas, os tratamentos químicos, os frigoríficos, o transporte de longas distâncias, faz com que possamos dispor, em todas as estações do ano, dos frutos que desejamos ou que a bolsa nos permite adquirir. São atractivos, brilhantes, sem mácula, e desafiam-nos nos escaparates dos supermercados, seguros de que não lhes encontraremos defeito. Ah, a não ser, é claro, o perfume, de todo perdido, e o sabor, bem menos intenso depois das andanças a que os sujeitaram.

Haverá uns trinta anos, um fazendeiro ofereceu-me uma maçã-de-espelho, enorme, achatada nos pólos como as da sua espécie, as bochechas rosadas de quem vende saúde. O perfume de uma maçã-de-espelho não tem igual.

Coloquei-a sozinha num prato, a fazer-nos a mais perfeita companhia: beleza, aroma e aquelas bochechas sorridentes que, fosse mais sagaz o nosso olhar, haveriam de partilhar connosco alguma peripécia divertida.

Tenho a vaga memória de que é um pouco ácida a maçã-de-espelho…

Alguém se lembra, ainda, desse sabor?

Maria Amélia de Vasconcelos

Texto publicado no jornal interno da S.C.da M.do Cartaxo.

31 julho 2010

MADRUGADA

A palavra que escolhi para este  encontro foi madrugada. Podemos enfeitar a palavra madrugada com os mais diversos adjectivos: clara, morna, breve; mas poderá ser sombria, gélida, longa, em particular quando nos é penosa. Para «madrugada» não preciso, agora, de adjectivos. Pronuncio, apenas, lentamente, as suas sílabas e acho-lhes um sabor novo, fresco, uma música ritmada, com sons abertos. Repito «madrugada» e julgo que poderá haver uma balada por escrever…

Madrugada é uma ponte entre a noite que finda e o dia que se instala, o tempo exacto que as estrelas levam a apagar o seu próprio brilho. Noite e dia, trevas e luz, talvez ferissem o nosso olhar e o nosso sentir, não fora o trabalho da madrugada que, em passos miúdos, cria os meios tons, o ambiente adequado para que o mundo acorde para a vida.

Maria Amélia de Vasconcelos

Excerto do texto publicado no jornal interno da S.C.da M.do Cartaxo.